domingo, julho 03, 2011

Morder-te o Coração

Fiz as malas e entrei no avião.
Ao topo da mala de mão que fiz à pressa sinto o livro que para ali tinha atirado.
Trouxe-o à tona e olhei para a janela.
Estamos em velocidade cruzeiro e a verdade morava ali.
Recordei-me do incrível que foi quando li aquele livro pela primeira vez.
Estava de luto, igualmente a sós, na Holanda.
Abri a primeira página e decidi mergurlhar-me na memória.

"ELE

Tu já não te lembras. Foi há dez anos, neste mesmo quarto, a olhar o Pico, os barcos, o azul-cinza do mar calmo, a cama por fazer, os livros e as revistas espalhadas, tu à janela, a olhar para fora e depois, sem pressa, num gesto pausado, a camisa de alças a fugir do teu ombro, uma alça apenas, fininha, o teu sorriso a crescer e a frase

Anda, anda morder-me o coração.

Tinhas, naqueles dias, a tranquilidade. como se estivesses bêbada de paz, o teu corpo andava pelas ruelas a dançar numas sandálias de corda e pano, azul-celeste. Comias gelado com cuidado para não sujares as mãos e ouvias-me falar, os teus olhos prisioneiros nos óculos escuros, enormes, de massa preta, anos 50. Eu falava depressa, de tudo, contava-te a minha infância, os dias negros no liceu de padres, a tarde em que rasguei a garganta com o fumo de um cigarro enrolado à pressa no quarto do meu primo Francisco.

Descrevi-te em pormenor as sardas da minha primeira paixão, a curva acentuada do ventre, como se estivesses grávida, grávida de doces, pipocas e rebuçados de papel brilhante vermelho Bolas de Neve.

Disseste que os rebuçados eram bolas de neve e esse reconhecimento comoveu-me, como se fizesse mesmo parte do meu mundo, como se dominasse uma linguagem interdita aos outros, tão natural para nós.

Sentada na esplanada da ilha, com os pés enrolados debaixo das pernas bronzeadas, a ponta do vestido a espreitar a tua coxa, distraída, brincavas com os dedos enquanto eu prosseguia na minha história e, depois de me ter despejado para cima de ti, todas as minhas verdades, todas as minhas mentiras, olhaste com aquele sorriso pequenino. Declaraste-me oficialmente o homem do teu Verão. E cumpriste a tua palavra.

Ficámos os dois a ver os barcos e a comer devagar refeições de pão e queijo, peixe e mariscos. Quando falavas - e tu raramente falavas -, era sobre a tua casa, a planície e o rio. Tinhas inveja da ilha por ter mar, por ter liberdade, mas contavas histórias sobre as barcas nos rios e foi contigo que aprendi que quem navega não sabe conversar porque o rio tece mistérios vedados às palavras. Contaste-me que em Veneza os gondoleiros têm barbatanas nos pés para poderem andar em cima da água.
Riste-te, lançaste a cabeça para trás e os teus óculos caíram na calçada, um barulho de plástico a revirar nas pedras. Foi então que descobri o rio nos teus olhos e comecei a amar-te.

Todos os anos venho aqui. Fico no mesmo quarto e vejo-te, de manhã, enconstada à brisa que te levantava os cabelos, a dizer

Anda, anda morder-me o coração.

*


ELA


A questão não é saber se o amor nos aconteceu. Isso é tão relativo que o silêncio é o melhor. Percebe-se melhor.

Naqueles dias eu achava que não éramos nada, tu e eu.


Podíamos dormir juntos. Podia sentir o teu suor sobre o meu peito, os teus ruídos na casa de banho, a forma como mastigas a pastílha elástica, elegante, por vezes entreabrindo a boca num sopro que se aproxima de um suspiro. Podíamos rir e chorar, contar as deventuras da adolescência, porque nada do que era verdade e, por isso, me poupava nas palavras, para não te castigar com tantas mentiras.


Tudo o que passámos, naqueles dias, não era definitivo, não tinha coordenadas futuras, seria, por fim, o crescendo que iria morrer de repente. Olhava-te no sono e pensava que sabia exactamente a data em que o amor se iria desfazer.


A ilha estava congelada no nosso abraço. Nos teus pensamentos era tudo o que fazia sentido. Eu tinha um prazo. Uma vida à minha espera, um regresso feito de poucas memórias. Ficarias em terra, náufrago de mim, sem perceber os destroços de nós.


Sabia exactamente o vermelho do sangue que te iria escorrer da alma, como uma tinta, como um salpico de dor demasiado forte para o teu corpo magro.


Não tenho coração, pensava nas noites em que ficávamos a olhar o reflexo da lua no atlântico.

Tu contavas a história do duende prateado que tem que acender as luzes todas do mar da tranquilidade. Ele que prometeu ao sol que pode dormir sossegado. Haverá sempre uma luz para espantar as coisas más.


Quando me fui embora, não deixei morada.

Hoje, quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar de que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber."





in Morder-te o Coração de Partícia Reis