segunda-feira, maio 04, 2015

l' libertango malédiction

Tenho pouco mais do que breves minutos para condensar num gemido o que aconteceu, mas tu vais-me entender. Ou não, porque somente a memória permanece deste lado e com a tensão de um elástico velho que já sem cor se deixa imiscuir.

Ontem fui interpelado pelo desafio da memória quando o animal que em mim habitou me seduziu a ver o Saint Lauren. O não autorizado, sempre. Nada a declarar de especial. O meu gosto hoje é bem mais sofisticado do que uma interpretação demasiado vaidosa e francesa que deixa de parte o mais importante daquela criatura, a beleza que emergia da mais belo dos feios e recriava o mundo com um toque de luz que só mais tarde vim um fazer. Suicidou-se entretanto e a multidão cega continua sem perceber ao certo a enormidade do seu desaparecimento.

Deitei-me contudo cansado e com alguma saudade. Mas deixei-me dormir.
Levanto-me mais cedo do que o habitual e fui para a torre onde agora não habito.
Saí à hora de almoço para ir a casa fechar uma janela e esbarrei com ela. Joana.
A mulher que nos venceu a todos enquanto dormíamos sobre a nossa própria vaidade.
Ela segurou-te daquela imensa que outrora fazia jus à força do seu nome original. Defendeu-te de ti mesmo e trouxe um vocabulário seguro nas palavras que naquela altura te arranquei de noite.
Chamou-me com aquele ar doce inigualável e a primeira coisa que ouvi dentro de mim foi o “não a subestimes” – nunca mais esqueci esta frase quando, numa noite em Paris, o meu telefone tocou e ao desligar daquela voz senti o estalo de uma jogada perfeita que me paralisou toda a noite.

Eu estava vestido com um casaco nórdico cujo forro revela a ironia do meu último divórcio no tempo. Não te cheguei a falar dele condignamente. Nem a ela lhe contei mais um falhanço.
Visualizei-a entre as crianças e um casamento demasiado imperfeito para ser infeliz.

Olhei para o relógio e resumi o encontro em menos de nada. Entrei no carro e de repente o rádio cuspiu-me, com aquele que era o perfeito batimento para embalar a memória. Um velho tango, claro. O vosso tango. Soltei uma gargalhada e senti-me nefastamente vivo outra vez. Como se das entranhas emergisse em urgência o animal reluzente e boémio que era no nosso tempo.

Depois fiz o que tinha a fazer e, já ao final do dia, deixei-me levar pela vulgaridade do cansaço e um vida comum as nós os três. Temos tudo sempre. Mas já nada tem o mesmo sabor, nem nenhum vinho voltou a ter o mesmo corpo.

Gosto de ti assim como estás. Gosto dela assim como se recriou. Mas às vezes sinto a falta do que fomos porque no reflexo, acho que me via melhor.