domingo, abril 15, 2012

Domingo do Até (Mais)


Estava sentado na bancada da cozinha a preparar aquele que seria o seu primeiro almoço da estação nova. Ao passar a faca pela manga de cores saturadas viu no reflexo o sol que o encadeava.

Contornou o seu corpo com o olhar e reparar no arco-íris que se projectava no chão e que rasgava a porta branca já velha de tantas passagens. Parecia uma visita inesperada que chegava em silêncio numa tentativa discreta de o surpreender.

Pousou a faca e deixou-se levar pela curiosidade infantil, fingindo para si mesmo que iria descobrir outra terra, onde os nenúfares do modernismo dançariam consigo uma coreografia lenta pautada por Erik Satie. Prolongou-se pela divisão ocupando-a ao som imaginário da primeira composição lenta de Gnossiennes.

O corpo fundia-se com a luz e o chão com o som. O xadrez preto alternava os níveis com os quadrados brancos daquela pista, e o seu corpo em espirais lentas, vislumbrava formas e cores que o acompanhavam naquele semicerrar de olhos e sorrisos circenses.
Via-se dançar com a Virgínia e a Florbela, e mesmo ao fundo do corredor sentia a cumplicidade do Óscar que, sentado com o seu ar cansado, afirmava o consentimento e glória à dança livre num centro de uma cozinha qualquer.

Se o Darling ali estivesse evocaria a presença da Regina e da Luísa na certa, e juntar-se-ia a ele numa embriagada forma de viver por instantes.

No corredor voavam as guitarras de Braque num despique com as pequenas aves do Pinheiro.
Da mala de cartão castanha saiam os insectos de Lalique, e as cores reflectidas no chão afirmavam a presença daquela visita inesperada.

De repente o telefone toca e era a criança do mato.

- Sim?
- Desculpa, não sei se é oportuno, posso ligar mais tarde.
- De todo! Diz-me. Estava só a sonhar acordado.
- Em relação aquilo que te disse à pouco... Desculpa, não sei dizer as coisas como devem ser ditas, sabes disso.
- Sei, mas o pior é que afinal ainda não sabes é fazer as coisas como devem ser feitas, parece-me.
- Talvez tenhas razão.
- Talvez.
- Questiono-me porque é que entre nós sempre houve este problema de timing. No fundo a verdade é que pensei muito nesta viagem e não sei como concluir.
- É simples. Se te apercebeste que eu sou o the one, faz qualquer coisa. Agarra-me.
- E tu deixavas? Depois de tudo?
- Eu sou infinitamente mais surpreendente do que aquilo que espero de mim.
- Mas e depois penso no passado, em tudo o que já aconteceu e isso cria ruído na imagem que acho que quero viver agora.
- Percebo mas não há nada que possa fazer em relação a isso. A vida ou se vive correndo riscos ou se assiste a ser vivida.
- Não tens medo? Eu tenho...
- Todas as pessoas têm receios quando avistam situações arriscadas. Se eu for honesto seria quase que uma burrice minha, do ponto de vista físico e tangível, se eu me arriscasse a voltar a esse país agora que já encontrei uma casa neste. Mas tudo é possível. Eu posso perfeitamente parar o método e comprovar uma história e até me magoar irremediavelmente com tudo isso.
- Então porque farias isso se prevês um fim?
- Primeiro porque não vejo o fim e segundo e mais importante porque simplesmente posso.
- Mas eu também não disse que queria tentar.
- Pois não, por isso mesmo terás que ser tu a querer e tu a tentar. A propor e a querer muito. Pouco não serve, o “afinal de contas até gosto é de ti” é a medida mais pobre que pode existir. E eu, naturalmente, nem a considero possível no meu país. Ou é ou não é. Com medo ou sem medo se é para ser age. Faz. Acontece.
- Dói-me a cabeça.
- Dança que isso passa.
- Como?
- Estão-me a tocar à campainha. Deve ser a minha mãe? Falamos depois, ok?
- Sim, eu vou-me deitar um pouco para descansar.
- Queres jantar mais logo?
- Não, quero ficar sozinho, depois falamos.
- Um clássico. Dorme bem então.


A porta anuncia a chegada a principal de todas as mulheres que ao trespassar a porta inundou a casa daquele amor.

- Está um dia lindo meu querido, vamos passear?
- Sim Maria, claro! Já tinha pensado nisso.
- Olha que engraçado, tens um arco-íris no chão da cozinha.
- É mesmo. Ainda à pouco olhava para ele. E o quão maravilhoso é viver aqui.
- Estiveste a comer manga? A mãe trouxe uma no saco que deixei ali.
- Sempre em sintonia Maria.
- Sempre. Vá, vamos apanhar sol?
- Vamos. Hoje vou levar-vos ao Chapitô, pode ser? Chama o Zé e vamos embora.
- Se o teu pai não quiser vir, vamos nós.
- Ele vem. Zé, vamos?
- Vamos.

Fechou a porta antes que o Al Berto tomasse posse do seu território e retomou ao sol e à cor pelas ruas da velha cidade.
Embora certo de que no seu regresso não escaparia ao beijo de Klimt, foi pelo fado a fora degustar a estação nova ali e na melhor das companhias ouvia pelo caminho o Je te Veux do mesmo Satie.