terça-feira, março 05, 2013

Onze da noite



- Ainda bem que vieste. Queres beber alguma coisa?
- Olá. Sim, o que e que estás a beber?
- Ginger ale.

        - Um copo de vinho tinto por favor...

- Está muito fumo aqui?
- Tens um isqueiro?
- Eu não fumo... e já vi que tu ainda não deixaste.
- Queres?
- Não obrigado.


- Então diz-me lá ao que se deve a honra e o privilégio deste convite?
- Não sejas irónico. Na verdade achei que não virias.
- Vivo aquí em cima, não me custa nada. E além do mais sempre gostei de um bom copo contigo.
- Sim, eu sei, mas como passou tanto tempo...
- O tempo é aquilo que fazemos dele e tu deves ter alguma coisa para me contar, ou estou errado?
- Bem, nada que não te tenha dito na outra noite. Mas achei simpático convidar-te. Saber o que tens feito. Afinal de contas naquela noite só falei de mim.
- E isso não era uma intenção? Parecias bastante concentrado na tarefa.
- Não sejas assim... Sei lá, vi-te ali e não estava à espera e decidi falar um pouco. Afinal de contas tanta coisa mudou?
- Ai sim? e o quê para além do facto de eu, segundo as tuas palavras, estar "mais bonito", e da tua relação ter terminado.
- Meti-me a jeito, já percebi. E tu não irias resistir, claro está.
- É... sempre tive uma cadência pelo irresistível como sabes.
- Estás a falar de mim?
- Não te iludas meu caro, estava mesmo a falar de mim. Terá sido por não me resistir a mim mesmo que aceitei o teu convite.
- Ok, eu mereço.
- Não te condenes tanto que esse é um falso encanto já descodificado em ti.
- Elah... agora sinto que levei um estalo.
- Desculpa. Não era minha intenção magoar-te.
- Também não tanto...
- Acredita que se fosse intencional darias conta.

          - Obrigado. Quando puder traga-me um cinzeiro por favor.

- Estavas a dizer... Ah, estava eu a dizer-te que darias conta não era? Deixa lá isso... Conta-me lá o que querias.
- Nada em especial. Como te disse só queria estar um pouco e saber de ti.
- Eu estou bem. Ainda vivo ali em cima, ainda trabalho no mesmo sítio. Ando muito dedicado a uns projectos interessantes. Tenho passeado e revisitado amigos. Tudo normal.
- Sim, o Nuno disse-me que te encontrou no aeroporto. Que estavas a chegar de algum lado quando ele foi para Barcelona.
- É mesmo. Ainda estive um pouco à conversa com ele, que estava todo excitado com os seus sapatos novos e ía ter com não sei quem a Barcelona.
- Sim, ele anda bem disposto. Apaixonado até eu diria.
- Fico contente. Ele é um bom rapaz. Gosto dele.

      - Vai desejar mais alguma coisa?      - Não obrigado.      - Ontem a sua amiga deixou aqui o casaco. Guardei-o ali.      - Obrigado, eu posso leva-lo quando sair então. Muito obrigado.      - De nada. Depois é só dizer-me quando pretender sair.      - Obrigado.

- Continuas um habitué já vi...
- Sim, ainda moro ali em cima e sim, estive cá ontem à noite com uma amiga.
- E tu? Apaixonado? Quero saber, nunca me contas essas coisas.
- Eu estou bem, não me posso queixar.
- E tem nome?
- Já me desapaixonei.
- Quando?
- Agora mesmo.
- Mas como se chama ou chamava.
- Tarde demais. Já não vale a pena referir.
- Bem... que misterioso. 
- Apenas encantador. Só agora te dás conta disso?
- Estiveste bem agora. E com esse sorriso matreiro... Eu não te compreendo. Deixas-me sempre na dúvida.
- Quando assim for basta perguntares que eu respondo. Tens é que perguntar o que realmente queres saber. De outra forma estarás a tentar iludir-me. E a tentativas de ilusão gosto de responder com ilusionismo.
O que é que realmente queres saber? Se é verdade que "quando te deitas com crianças acordas mijado"? Sim. Eu já te tinha dito. E a esta hora tu próprio já o terás confirmado, a contar com a imagem que tive naquela noite. Sim. É verdade. 
Queres saber se eu ainda te acho interessante, não é? Sim, eventualmente, não sei, não voltei a pensar nisso e desde aquela época que, honestamente, o mais provável é teres perdido o encanto que tinhas. Pelo menos para mim. Mas não sei. Teria que acontecer alguma coisa. Uma coisa é certa, jamais o meu ouvido volta a ser penico e muito menos o meu sofá um divã.
- Auch! essa doeu.
- Sabes bem que foi verdade. Não te armes em maricas agora. Até porque nem te assenta e rapidamente, no exercício da vaidade em ti, se te colocares nessa posição, tu próprio o rejeitarás.
- Eu não sou tão ego-cêntrico como tu me pintas.
- Foste fraco. Ou melhor... preguiçoso.
- Mas naquela altéra eu fui sempre honeste contigo.
- Foste conveniente. Para ti. Nunca para mim. Não te iludas.
- Não gosto que penses assim.
- E não penso. Pensava. Pensei. Agora, confesso, é-me indiferente.

         - Pode trazer-me o casaco e a conta por favor?

- Mas vais-te embora?
- Não, ainda aqui estou. 
- Ok, já percebi. Desculpa ter tentado.
- Não sejas parvo. Não me querias mostrar a tua casa agora que está apresentável? Não foi para isso que tiveste tomates para vir até aqui ao cimo da rua?
- Não pensei nisso. Mas, se quiseres ver... Bem, está desarrumada.
- Então não vou.
- Nao. Vamos, claro.
- Ok

          - Obrigado. Até amanhã.

- Eu juro que não te percebo. Ainda agora estávamos ali sentado, fumaste um cigarro e nem acabaste o vinho.
- Va, anda.
- O que estás a fazer?
- Va, aproveita. Afinal de contas estou a fazer "qualquer coisa" para te poder dar um resposta.