quarta-feira, outubro 17, 2012

O fio dos dias.


“E assim prosseguimos com as nossas vidas, cada um para o seu lado. Por mais profunda e fatal que seja a perda, por mais importante que seja aquilo que a vida nos roubou – arrebatando-o das nossas mãos -, e ainda que nos tenhamos convertido em pessoas completamente diferentes, conservando apenas a mesma fina camada exterior de pele, apesar de tudo isso continuamos a viver as nossas vidas, assim, em silêncio, estendendo a mão para chegar ao fio dos dias que nos coube em sorte, para logo o deixarmos irremediavelmente para trás. Repetindo, muitas vezes, de forma particularmente hábil, o trabalho de todos os dias, deixando na nossa esteira um sentimento de um incomensurável vazio.”

Haruki Murakami

sexta-feira, julho 27, 2012

HOMENS DE CAMPER com BIGODE EGOBUST


Sempre desconfiei de homens cosmopolitas que usam camper. 
Mas no melhor dos sentidos. Apesar de o mundo ser contra os determinados códigos de conforto numa suposta bolha social em que o estilo é entendido como palavra de ordem, eu não poderia ser mais a favor.
Há qualquer coisa de promissor quando a presunção intelecto-cultural é projectada sob forma de manifesto naquilo que calçam. A velocidade e contradição que vai do topo da cabeça aos pés. Ou a coerência. 


É no mínimo interessante aquele ar negligé
meets campus natura meets bibliotecas e outros locais de eremitas. 
A denúncia dos seus gostos sob forma de galhardete discreto de um estilo de vida que querem para si.

São as saborosas contradições do ser humano, que grita por uma liberdade intelectual enquanto se veste com um cartaz que em nada difere dos outros que queima, senão apenas na cor.
Enfim, mas isso seriam outros debates. 


O que me trouxe aqui foi o bigode. A forma e a cor do bigode que aquela criatura atrapalhada com a sua própria lógica tinha.
Ou seria a boca. O timbre. A dicção. 


Recordo-me do improvável mais absurdo de todos, que foi o momento em que o conheci. Estávamos entre campas e jazigos e o momento não poderia ser mais estúpido. Eu tinha sido cuspido para aquele lugar sem me dar bem conta como. Lembro-me vagamente da brutalidade daquele dia e da forma como nada fazia qualquer sentido. 


De repente o burguês, o infame mortal que sempre quis mais do que na verdade lhe pertencia, anuncia alguém que queria apresentar. 


Fê-lo da invariável forma protocolar e pseudo-aristocrática, que me faz sempre revirar os olhos e não esperar menos que nada do outro lado.
E de repente fiquei sem reacção.
O timbre. A dicção. Os olhos. A ilógica conjugação do anonimato e a presença de espírito. A boca. A eloquência. Os olhos rasgados. As mãos correctas. A altura exacta. E a segurança que defendia uma ferida qualquer. 


Em 3 segundos levitei para uma dimensão qualquer em que o animal em mim esvaziou aquele espaço comum, e nos criou um planeta onde somente habitávamos nós os dois.
Não me lembro de ouvir qualquer outro ruído para além dos que ele podia emitir. 


E de repente a culpa. A moral. Essa velha filha da mãe que volta e meia me recorda que nasci parido de outro matrimónio, que não aquele onde a culpa e a moral se associam a tudo.
Como é que num funeral de um amigo eu poderia cometer a indecência de abandonar tudo por segundos, e perder-me de fascínio por um estranho que até então só partilhava comigo a perda?
Que indecente. Que imoral. Que espontâneo, que natural. E rapidamente me resolvi a pensar que a pessoa desaparecida estaria a achar a mesma graça que eu a toda a situação. 


Referiu que já me conhecia de vista há muito tempo, mas que compreendia perfeitamente que o seu rosto nada me dissesse. Afinal de contas "sou um rapaz que ninguém nota", disse ele claramente a gozar com a minha cara. Aquele piquinho a engraçado/presunçoso foi o ingrediente que faltava para lhe reconhecer uma das melhores qualidades nas pessoas - a ironia.

Uns tempos mais tarde, e ao que percebi tarde demais, sentei-me com a criatura nas muralhas da Sé.
É então que reparo no bigode. Já meio queimado nas pontas. Nas pontas que penteava discretamente à la Salvador, como que lembrete para si próprio do seu poder de sedução e segurança no momento.
Mas estava confortavelmente descontrolado. Falou e quebrou diversos códigos de protocolo entre estranhos. Depois, ao despedir-se foi tosco e transmitiu uma estranha incerteza no que estava a fazer. 


Seria fácil imaginar que se tratava de um ser bizarro, mas isso seria só fácil. 

Seria recorrente atribuir-lhe um mistério qualquer que validasse ao meu imaginário a vontade de o levar para algum lado longínquo, conhece-lo melhor. Mas isso seria só mais um dos muitos mecanismos recorrentes da forma como gosto de ler partituras. 

Depois veio o momento Rua Garrett. O inusitado momento em que durante o dia me passeava para comprar uma camisola de seda para uma amiga, que ia visitar no dia seguinte, e sou surpreendido com um grito em meu nome.
Era ele novamente. A correr. Como de todas as vezes fez questão de me mostrar que vivia. Passava-se alguma coisa com a exposição e tinha que resolver tudo rapidamente. Falámos em andamento, literalmente. Até que parei em frente à loja e disse-lhe com um sorriso sincero: Eu fico aqui.
E ele, mais uma vez de uma forma atrapalhada, lá se despediu em fade out pela rua a fora. 


Vieram-me à cabeça as mãos dele, que dançavam com o copo de ginger ale sobre a mesa. A forma como me inquiria abruptamente. Como se despejasse o seu cansaço em mim e, nalguns momentos, fosse sua intenção tornar aquele momento num exercício técnico vulgar. Fez-me falar de coisas que não falo facilmente num formato social. Deixei-me ir pelo desafio em mim mesmo. Até onde poderia eu ir nas respostas às suas perguntas demasiado frontais. 


E depois, isso não batia certo. Se eu não estaria de todo na mira, porquê chamar-me na via pública, numa rua onde facilmente me conseguiria evitar sem eu dar conta? 


Tratava-se de um clássico discreto em que, por alguma razão, optara por me manter “ao largo” mas não totalmente excluído? E eu estranhamente permiti. Até porque de uma forma qualquer, e essa sim bizarra, tinha em mente que ainda iria acontecer qualquer coisa. Sem qualquer ansiedade ou outro sentimento acelerado. Mas em mim havia qualquer coisa que me dizia que era eu, o outro, que um dia ele terá chamado secretamente para a sua vida. 


O que iria lá fazer eu não sei, mas apetece-me descobrir. 



terça-feira, junho 05, 2012

Melancholia

"- Para mim existe claramente um T. antes e outro depois do Melancholia. Posso ter 80 anos ao rever o filme, e irei sempre lembrar-me de ti. Naquela noite tudo mudou. Tu nunca mais foste o mesmo."
D.



segunda-feira, maio 28, 2012

Smoking Crash


Às vezes tinha a sensação que vivera toda a vida em aeroportos. Conhecia os recantos de tantos quanto os das casas onde fiz vidas cruzarem-se com a minha.
Não entendo a beleza como a entendi. A negação do âmago e da alegria num corpo só, é de uma monstruosidade estética que não consigo aceitar de que possa fazer parte algum dia. 



O medo é uma variante da corrente sanguínea que nos diminui para nos podermos superar em nós mesmos. Com o estalar dos ossos e o esticar da pele, num arrepio de vertigem que nos traz o calor do sangue que ainda nos corre pelas veias, e finalmente sentimos a tão aclamada liberdade. Mas não. Não somos efetivamente todos iguais.

Seria um aparente dia normal. Daqueles que por nos parecerem tão normais nos alertam para uma possível catástrofe. Daqueles cujo equilíbrio não tem qualquer melodia ou cheiro. Daqueles estranhamente vazios.
Mas não. Efetivamente não se veio a revelar um dia normal.

Estava parado no topo de uma das colinas da cidade quando o sol e o silêncio me rasgaram a mente e as vozes inconfundíveis de outrora se fizeram ecoar.
Virei-me e não vi ninguém. Estava ali a sós. Completamente a sós.
O silêncio e o calor na pele não me conseguiram agarrar à terra, e no piscar de olhos que evitei, dei um passo em direção ao vazio.

Poderia ter regressado à pintura. Poderia ter regressado à fotografia e ao desenho, onde o poder da cor transformou durante anos a minha realidade. Mas as mãos estavam imóveis e o olfato sem cor.
Desde aquela noite em que nos vestimos de preto, e usámos as melhores manobras para cumprir todas as expectativas de uma imagem, que não consigo entender o que aconteceu.

Lembro-me de entrar no carro negro e incorporar a personagem com sorrisos e galanteios. Lembro-me do perfume da vaidade que naquela noite não havia meio de me assentar sobre a pele, nem mesmo quando atravessei a passadeira vermelha.

Os flashes e aqueles projetores violaram-me a mente. A cada disparo, mesmo já não sendo para mim, sentia o reerguer da personagem em mim.
Recordo-me da arrogância de um agente que ferozmente garantia o tempo de antena a mais uma desgraçada que mal respirava no vestido que a obrigaram a vestir.
Tudo aquilo, naquela noite, já não era mais o meu mundo. Havia qualquer coisa ali de repetição e desespero que me elevavam a rejeição no estômago.

Entrei e pensei que não te tinha visto chegar. Quando me sentei avistei-te do meu lado esquerdo.
Olhei para o telefone e pensei no quão estranho estava a ser a demora de uma resposta à carta que tinha escrito a nu, àquele outro que cada vez mais parecia não ser quem eu esperava fosse.
Voltei a olhar para ti e elogiei a tua amiga. Estava elegantíssima.
Tu nem reparaste na minha presença nem por um segundo.
De repente viras-te para trás e eu consigo perceber a insólita roupagem que trazias. Não parecias tu. Parecias outro que outrora criticavas sobre a personagem em mim.

A princípio rejeitei a ideia. Não sei se por ciúme ou por pura precaução.
Os pensamentos começaram-me a assombrar de tal forma que ao primeiro intervalo abandonei a sala e vim para a rua.
Chamei o meu carro e sem hesitar afastei-me do daquela noite ali.

No caminho para casa toca o telefone e era o Louis.
- Acabo de chegar a Lisboa e, no aeroporto, cruzei-me com o Ulliel que estava embarcar para Miami.
- Desculpa? 
- Sim, não sabia que ia voltar e ele estava estranho e mal me falou. Como se fugisse de alguém ou de alguma coisa. 

Conheci-o há dois anos numa miragem do Quartier des Enfants Rouges. Mais propriamente numa festa em casa de um desses novos cineastas com a mania que era alternativo mas que na verdade não passava de mais um menino do papá.
Era uma casa fabulosa no 3e arrondissement, que parecia tirada de uma imagem do final do século das lutas pela liberdade entre burgueses abastados mas negligentes pelo apelo a uma cultura maior. Os pais tinham viajado para Lisboa e ele achou que a casa precisava de uma vida lasciva qualquer.
Lembro-me dele a um canto na sala mas perfeitamente intrujado. Não me parecia acompanhado e tive a certeza quando me fitou o olhar.

Naquela noite falámos até amanhecer e eu, como tinha acabado de regressar de Biarritz e decidido mudar de bairro durante as ferias, achei que aquele seria o bairro perfeito. Ele, por sua vez, estava igualmente a viver um divórcio complicado e tinha acabo de chegar a Paris onde procurava um refúgio naquela cidade por tempo indefinido. Levou-me a ver um espetáculo do Alain Platel onde o mundo fazia o mesmo sentido para ambos.
Vivi com ele 7 meses naquele bairro até que um dia, ao regressar de Nova Iorque, cheguei a casa e ele tinha apenas deixado um bilhete.

Um ano depois encontrei-o em Lisboa, no Lux, e ao fugir por entre a multidão mandou-me uma mensagem que só dizia: Desculpa.
Soube por entre amigos que tinha tido uma recaída e que tinha viajado para fugir a um amor pérfido ao qual sucumbia como a morte. Mas até hoje não consegui entender ao certo o que aconteceu.

- Eu também não sabia. Aliás, o estranho é que ainda ontem falei com ele ao telefone e tínhamos combinado jantar amanhã. Não percebo. 
- Pois, que estranho… Mas olha, vou deixar as coisas a casa da Isabelle e posso ir ter contigo se quiseres. 
- Claro, eu estou a caminho de casa também. Dá-me uns 20 minutos e encontramo-nos lá. 

No caminho a imagem que tinha de ti ia ficando mais confusa. Que sentido fazia tudo aquilo afinal?
Se por um lado rejeitava aprofundar por receio de dramatizar, por outro trazia um estranho amargo de boca que não me permitia abandonar as conclusões.

Recebo uma mensagem no telefone.

“Onde estás? Perdi-te de vista e já não me consegui sentar ao teu lado. Temos que falar porque preciso de te contar o que ouvi.” 

O meu estômago deu a volta e pressenti que era sobre ti. Respondi que me tinha sentido indisposto e estava de regresso a casa, desfazendo-me em desculpas e evitando a pergunta.

“Que grande merda! Mas estás bem? Falamos amanhã então.” 

Estava já a chegar à Avenida da Liberdade quando liguei à Mrs. Dalloway a contar-lhe o estranho de tudo aquilo.

- Tens a certeza? Que estranho… Não percebo – disse ela.
- Não te sei explicar, é um feeling. E cheguei a enviar-lhe uma mensagem mas ainda não respondeu. Mas também pode ter o telefone sem som para não interferir com o espetáculo, não sei. 
- Desde o funeral que sinto que não andas bem e que não seria má ideia tirares uns dias e vires ter comigo. 
- Minha querida talvez tenhas razão mas não sei se consigo tirar uns dias agora. 
- Vem, faz-te falta. E é verdade, o outro disse-te alguma coisa? 
- Nada. Quer dizer ligou-me e disse-me que deveria escrever um livro, achas normal? 
- O quê? Mas antes ou depois de ler a carta. Não percebi, não lhe perguntei porque me sinto tão envergonhado com aquilo. Mas pelo contexto ele referiu que tinha estado a ler artigos antigos que publiquei na velha época. 
- Que medo! Isso não pode trazer coisa boa? 
- Pois não sei, mas incomoda-me ter-me exposto tanto e no fim sentir que não há uma palavra do lado de lá, sabes? 
- Claro, percebo-te perfeitamente mas isso também é bom. Assim ele só prova o como funciona aquela cabeça. 
- Pois… 
- Onde está? 
- Estou já na Avenida da Liberdade a caminho de casa. O Louis vai lá ter. Chegou à pouco a Lisboa e sabes que não dorme sem um copo de vinho e um relatório da cidade na sua ausência. 
- Ai que bom. Então vou-lhe mandar uma mensagem para ele te convencer a vir ter comigo a Versailles. E não aceito um não. 
- Vou tentar. Na verdade acho que nada me faria melhor agora nestes dias. 
- Então vá, ligo-te amanhã. 
- Beijo 

Lembro-me de desligar o telefone e estender a cabeça sobre a janela e estar a ver o céu por entre as copas das árvores. De me recordar das gargalhadas que dávamos com as nossas diferenças quando ainda vivíamos em Faubourg Saint-Denis. Daquela noite lembro-me ainda de fechar os olhos e sentir o cheiro forte do teu perfume verde que se entranhava na minha roupa e na minha pele e viajava comigo por onde quer que fosse.

Depois só me lembro de uma súbita travagem em grito e de um embate ensurdecedor. À memória recorro ainda hoje às luzes das sirenes da ambulância, que rasgavam o carro enquanto eu, imóvel, apreciava o silêncio absoluto da sua dança no teto.

Uma semana depois trouxeram-me uma revista social. A imagem. Lá estava a imagem em que anunciavas em surdina a companhia que escolheras para me substituir.

Fiz as malas para ir ter com ela. Efetivamente parecia-me já nada poder fazer aqui, e o descanso era agora imposto pelos especialistas da matéria.

Mas ainda assim ao fazer as malas perguntava-me que sentido teria aquilo tudo e sobretudo, até onde é que me posso ter enganado tanto em relação a ti.

Já no aeroporto comprei um jornal das artes. Li que vais lançar o teu novo projeto em breve. Soou-me tão estranho não estar por perto, soou-me tão mal tão pouco saber.

Sentei-me no aeroporto à espera da minha vez. Liguei-te duas vezes e não me atendeste, não me devolveste a chamada nem me enviaste uma mensagem.
Num resumo forçado espantei-me com a leviandade que com que desapareces.

Sentei-me e fechei os olhos até os segundo virarem minutos, e os minutos cumprirem as horas que me iriam arrancar dali.

A carta que não teve resposta.



"A morte em duplicado num dia faz-nos parar e respirar fundo. 
No fôlego fica preso o todo o ar que resta depois da notícia. 
No estômago fica a vertigem do medo e de tudo o que não dissemos. 

Hoje morreram duas pessoas que conheci. 

Uma era o talento e a alma da beleza na ponta dos dedos, a outra era a crença e o sentido de humor que enchia uma sala e nos lembrava a importância de viver feliz.

No medo mundano da possibilidade de nos acontecer, não posso deixar de dizer com medo de olhar para trás e nunca o ter dito. 

Amo-te. Estou em tratamento. Estou a tentar seguir em frente sem ti porque te amo. Se ontem a possibilidade de viver uma nova vida numa casa de praia às escondidas me atordoou, não foi por não te amar. Foi pelo medo de ir e viver aqueles dias secretos de forma igual aos da cidade. Em camas separadas. 

Estou em tratamento. Fiquei sem alpendre e a chave na minha mão já não abre a porta da casa. Sem abrigo a correr atrás de um barco que começou a andar à margem do porto. Tento não olhar para trás mas ficará para sempre “e se”. 

A vertigem, o medo, a morte. Que tento evitar com a defesa pelos bons momentos apenas, pelas palavras leves e os livros otimistas. Pelo amor em mim, de um mundo, para um mundo. Pela vida. "



domingo, abril 15, 2012

Domingo do Até (Mais)


Estava sentado na bancada da cozinha a preparar aquele que seria o seu primeiro almoço da estação nova. Ao passar a faca pela manga de cores saturadas viu no reflexo o sol que o encadeava.

Contornou o seu corpo com o olhar e reparar no arco-íris que se projectava no chão e que rasgava a porta branca já velha de tantas passagens. Parecia uma visita inesperada que chegava em silêncio numa tentativa discreta de o surpreender.

Pousou a faca e deixou-se levar pela curiosidade infantil, fingindo para si mesmo que iria descobrir outra terra, onde os nenúfares do modernismo dançariam consigo uma coreografia lenta pautada por Erik Satie. Prolongou-se pela divisão ocupando-a ao som imaginário da primeira composição lenta de Gnossiennes.

O corpo fundia-se com a luz e o chão com o som. O xadrez preto alternava os níveis com os quadrados brancos daquela pista, e o seu corpo em espirais lentas, vislumbrava formas e cores que o acompanhavam naquele semicerrar de olhos e sorrisos circenses.
Via-se dançar com a Virgínia e a Florbela, e mesmo ao fundo do corredor sentia a cumplicidade do Óscar que, sentado com o seu ar cansado, afirmava o consentimento e glória à dança livre num centro de uma cozinha qualquer.

Se o Darling ali estivesse evocaria a presença da Regina e da Luísa na certa, e juntar-se-ia a ele numa embriagada forma de viver por instantes.

No corredor voavam as guitarras de Braque num despique com as pequenas aves do Pinheiro.
Da mala de cartão castanha saiam os insectos de Lalique, e as cores reflectidas no chão afirmavam a presença daquela visita inesperada.

De repente o telefone toca e era a criança do mato.

- Sim?
- Desculpa, não sei se é oportuno, posso ligar mais tarde.
- De todo! Diz-me. Estava só a sonhar acordado.
- Em relação aquilo que te disse à pouco... Desculpa, não sei dizer as coisas como devem ser ditas, sabes disso.
- Sei, mas o pior é que afinal ainda não sabes é fazer as coisas como devem ser feitas, parece-me.
- Talvez tenhas razão.
- Talvez.
- Questiono-me porque é que entre nós sempre houve este problema de timing. No fundo a verdade é que pensei muito nesta viagem e não sei como concluir.
- É simples. Se te apercebeste que eu sou o the one, faz qualquer coisa. Agarra-me.
- E tu deixavas? Depois de tudo?
- Eu sou infinitamente mais surpreendente do que aquilo que espero de mim.
- Mas e depois penso no passado, em tudo o que já aconteceu e isso cria ruído na imagem que acho que quero viver agora.
- Percebo mas não há nada que possa fazer em relação a isso. A vida ou se vive correndo riscos ou se assiste a ser vivida.
- Não tens medo? Eu tenho...
- Todas as pessoas têm receios quando avistam situações arriscadas. Se eu for honesto seria quase que uma burrice minha, do ponto de vista físico e tangível, se eu me arriscasse a voltar a esse país agora que já encontrei uma casa neste. Mas tudo é possível. Eu posso perfeitamente parar o método e comprovar uma história e até me magoar irremediavelmente com tudo isso.
- Então porque farias isso se prevês um fim?
- Primeiro porque não vejo o fim e segundo e mais importante porque simplesmente posso.
- Mas eu também não disse que queria tentar.
- Pois não, por isso mesmo terás que ser tu a querer e tu a tentar. A propor e a querer muito. Pouco não serve, o “afinal de contas até gosto é de ti” é a medida mais pobre que pode existir. E eu, naturalmente, nem a considero possível no meu país. Ou é ou não é. Com medo ou sem medo se é para ser age. Faz. Acontece.
- Dói-me a cabeça.
- Dança que isso passa.
- Como?
- Estão-me a tocar à campainha. Deve ser a minha mãe? Falamos depois, ok?
- Sim, eu vou-me deitar um pouco para descansar.
- Queres jantar mais logo?
- Não, quero ficar sozinho, depois falamos.
- Um clássico. Dorme bem então.


A porta anuncia a chegada a principal de todas as mulheres que ao trespassar a porta inundou a casa daquele amor.

- Está um dia lindo meu querido, vamos passear?
- Sim Maria, claro! Já tinha pensado nisso.
- Olha que engraçado, tens um arco-íris no chão da cozinha.
- É mesmo. Ainda à pouco olhava para ele. E o quão maravilhoso é viver aqui.
- Estiveste a comer manga? A mãe trouxe uma no saco que deixei ali.
- Sempre em sintonia Maria.
- Sempre. Vá, vamos apanhar sol?
- Vamos. Hoje vou levar-vos ao Chapitô, pode ser? Chama o Zé e vamos embora.
- Se o teu pai não quiser vir, vamos nós.
- Ele vem. Zé, vamos?
- Vamos.

Fechou a porta antes que o Al Berto tomasse posse do seu território e retomou ao sol e à cor pelas ruas da velha cidade.
Embora certo de que no seu regresso não escaparia ao beijo de Klimt, foi pelo fado a fora degustar a estação nova ali e na melhor das companhias ouvia pelo caminho o Je te Veux do mesmo Satie.

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

terça-feira, janeiro 03, 2012

Royal T



Welcome 2012!

"I don't wanna hear the alarm
You don't have to use your charm
You don't have to break my arm
Sleeping does it always
I decide when I decide
I am in the mood right now
Baby can we (...)
"