sexta-feira, julho 27, 2012

HOMENS DE CAMPER com BIGODE EGOBUST


Sempre desconfiei de homens cosmopolitas que usam camper. 
Mas no melhor dos sentidos. Apesar de o mundo ser contra os determinados códigos de conforto numa suposta bolha social em que o estilo é entendido como palavra de ordem, eu não poderia ser mais a favor.
Há qualquer coisa de promissor quando a presunção intelecto-cultural é projectada sob forma de manifesto naquilo que calçam. A velocidade e contradição que vai do topo da cabeça aos pés. Ou a coerência. 


É no mínimo interessante aquele ar negligé
meets campus natura meets bibliotecas e outros locais de eremitas. 
A denúncia dos seus gostos sob forma de galhardete discreto de um estilo de vida que querem para si.

São as saborosas contradições do ser humano, que grita por uma liberdade intelectual enquanto se veste com um cartaz que em nada difere dos outros que queima, senão apenas na cor.
Enfim, mas isso seriam outros debates. 


O que me trouxe aqui foi o bigode. A forma e a cor do bigode que aquela criatura atrapalhada com a sua própria lógica tinha.
Ou seria a boca. O timbre. A dicção. 


Recordo-me do improvável mais absurdo de todos, que foi o momento em que o conheci. Estávamos entre campas e jazigos e o momento não poderia ser mais estúpido. Eu tinha sido cuspido para aquele lugar sem me dar bem conta como. Lembro-me vagamente da brutalidade daquele dia e da forma como nada fazia qualquer sentido. 


De repente o burguês, o infame mortal que sempre quis mais do que na verdade lhe pertencia, anuncia alguém que queria apresentar. 


Fê-lo da invariável forma protocolar e pseudo-aristocrática, que me faz sempre revirar os olhos e não esperar menos que nada do outro lado.
E de repente fiquei sem reacção.
O timbre. A dicção. Os olhos. A ilógica conjugação do anonimato e a presença de espírito. A boca. A eloquência. Os olhos rasgados. As mãos correctas. A altura exacta. E a segurança que defendia uma ferida qualquer. 


Em 3 segundos levitei para uma dimensão qualquer em que o animal em mim esvaziou aquele espaço comum, e nos criou um planeta onde somente habitávamos nós os dois.
Não me lembro de ouvir qualquer outro ruído para além dos que ele podia emitir. 


E de repente a culpa. A moral. Essa velha filha da mãe que volta e meia me recorda que nasci parido de outro matrimónio, que não aquele onde a culpa e a moral se associam a tudo.
Como é que num funeral de um amigo eu poderia cometer a indecência de abandonar tudo por segundos, e perder-me de fascínio por um estranho que até então só partilhava comigo a perda?
Que indecente. Que imoral. Que espontâneo, que natural. E rapidamente me resolvi a pensar que a pessoa desaparecida estaria a achar a mesma graça que eu a toda a situação. 


Referiu que já me conhecia de vista há muito tempo, mas que compreendia perfeitamente que o seu rosto nada me dissesse. Afinal de contas "sou um rapaz que ninguém nota", disse ele claramente a gozar com a minha cara. Aquele piquinho a engraçado/presunçoso foi o ingrediente que faltava para lhe reconhecer uma das melhores qualidades nas pessoas - a ironia.

Uns tempos mais tarde, e ao que percebi tarde demais, sentei-me com a criatura nas muralhas da Sé.
É então que reparo no bigode. Já meio queimado nas pontas. Nas pontas que penteava discretamente à la Salvador, como que lembrete para si próprio do seu poder de sedução e segurança no momento.
Mas estava confortavelmente descontrolado. Falou e quebrou diversos códigos de protocolo entre estranhos. Depois, ao despedir-se foi tosco e transmitiu uma estranha incerteza no que estava a fazer. 


Seria fácil imaginar que se tratava de um ser bizarro, mas isso seria só fácil. 

Seria recorrente atribuir-lhe um mistério qualquer que validasse ao meu imaginário a vontade de o levar para algum lado longínquo, conhece-lo melhor. Mas isso seria só mais um dos muitos mecanismos recorrentes da forma como gosto de ler partituras. 

Depois veio o momento Rua Garrett. O inusitado momento em que durante o dia me passeava para comprar uma camisola de seda para uma amiga, que ia visitar no dia seguinte, e sou surpreendido com um grito em meu nome.
Era ele novamente. A correr. Como de todas as vezes fez questão de me mostrar que vivia. Passava-se alguma coisa com a exposição e tinha que resolver tudo rapidamente. Falámos em andamento, literalmente. Até que parei em frente à loja e disse-lhe com um sorriso sincero: Eu fico aqui.
E ele, mais uma vez de uma forma atrapalhada, lá se despediu em fade out pela rua a fora. 


Vieram-me à cabeça as mãos dele, que dançavam com o copo de ginger ale sobre a mesa. A forma como me inquiria abruptamente. Como se despejasse o seu cansaço em mim e, nalguns momentos, fosse sua intenção tornar aquele momento num exercício técnico vulgar. Fez-me falar de coisas que não falo facilmente num formato social. Deixei-me ir pelo desafio em mim mesmo. Até onde poderia eu ir nas respostas às suas perguntas demasiado frontais. 


E depois, isso não batia certo. Se eu não estaria de todo na mira, porquê chamar-me na via pública, numa rua onde facilmente me conseguiria evitar sem eu dar conta? 


Tratava-se de um clássico discreto em que, por alguma razão, optara por me manter “ao largo” mas não totalmente excluído? E eu estranhamente permiti. Até porque de uma forma qualquer, e essa sim bizarra, tinha em mente que ainda iria acontecer qualquer coisa. Sem qualquer ansiedade ou outro sentimento acelerado. Mas em mim havia qualquer coisa que me dizia que era eu, o outro, que um dia ele terá chamado secretamente para a sua vida. 


O que iria lá fazer eu não sei, mas apetece-me descobrir. 



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