segunda-feira, junho 05, 2017

Já inundei a casa de tigres silenciosos.




Tinha acordado lentamente ainda a sul. O céu sobre a piscina rebentava uma ameaça de tempestade vinda de norte, e deixei-me ali ficar.

Sentei-me no jardim, onde só o café marcava a diferença dos sons de uma fauna escondida em redor.
Deixei-me ficar ficando, até ser tarde demais.

Atravessei a ponte numa estranha urgência de chegar à casa da cidade. Não vi as brumas sobre o Tejo que me anunciam a mudança, nem senti o vento de nortada que me rasga a vida quando quer. Mas as nuvens de um azul carregado traziam a mesma bagagem com ainda mais força.
Entro em casa, atirei com as malas para o chão e deixei-me ficar ali. Estático. Absorto em qualquer coisa que não fazia sentido naquele lugar.

Olhei para a porta e sentei-me vagarosamente à espera.
Não passou muito tempo até rever aquela história, a que poderia contar se um dia já morto, ainda falasse.

Do chão vi um fumo negro a invadir-me a sala e levantei-me para a varanda.
Abri as portadas como se fosse urgente respirar. O meu silêncio não me sufoca. As memórias e as infinitas portas abertas talvez sim.

Deixei a fachada da casa toda aberta para que se a loucura me levasse, o voo fosse certo.
Fui à gaveta e tirei um cigarro. Da bancada trouxe um copo de vinho e voltei a fumar.
Liguei a aparelhagem e deixei-me violentar de livre vontade. Ergui o volume até ao seu máximo com o tema que não me saía da cabeça.

Era o November do Max Richter, e o receio de entrar no nosso Verão.
Fui para a varanda e gozei cada nota sem vergonha absolutamente nenhuma.
Se ainda vivesse na Sé choveriam cascos de gelo de fazer soar os sinos.

O rio transbordaria das margens e causaria todos os estragos necessários até chegar à minha porta.
Os lobos uivariam de medo, e os loucos acordariam os hospitais em cantos.
Anunciava-se o momento de recomeçar a andar sem destino, para que o destino assim se cumprisse.
Deitei-me sobre o sofá e esperei. A olhar para a porta já ouvia o motor do carro a chegar lá abaixo.
A campainha tocou finalmente e decidi que não era ninguém.

Deixei-me ficar a olhar para o tecto e das janelas deixei-me revisitar.
Já inundei a casa de tigres silenciosos, e com eles o meu sangue voltará a ser contra-corrente, como para sempre deveria ser.