quarta-feira, março 04, 2009

O Alfinete Mal-me-Quer.

photo by Muriel de Seze

Pressiona a tecla com a ponta do dedo mais fino, deixando todos os outros nove em suspenso. A distância que os separa do teclado é variável entre si.
Levanta a cabeça e olha pela janela.
Está um dia incrível em que sinte chegada a hora de partir.

Pela primeira vê a criança da casa em frente. Sempre soube que ela existia lá dentro mas nunca a tinha visto antes.
A misteriosa criança brinca no jardim com qualquer coisa de minúscula na mão.
Parece retirada de um livro infantil.
Usa umas collants auiz turquesa, de inverno, sob uma saia encarnada rodada, e do tronco apenas se avistam as mãos porque tudo se esconde por debaixo de uma capa branca, presa por um alfinete amarelo mal-me-quer. O cabelo, mal cortado, é mesmo escuro…
Quase tão preto como o pêlo do cão com quem fala.
Achou estranho… nunca a ter visto antes e já devia ter uns quatro ou cinco anos.

Senta-se à janela ao som de Anne Queffélec.
Percebe que se algum dia conseguir dominar o piano, é exactamente aquilo que quer tocar.

Acende um cigarro e deixa-se invadir pela personagem no outro jardim.
Um carro chega à sua porta. Estaciona e ele não consegue reconhecer o vulto no seu interior.
A campainha toca e ele ignora, deixando-se ainda assim visível ao estender-se pela janela com um pé suspenso no telheiro que avança sobre a fachada.
A pessoa fala com ele.
Ele não responde… ignora sorrindo.
Aumenta o volume da música e desejou ter uma daquelas coisas de fazer bolas-de-sabão.
A personagem desiste. A criança pára de brincar, atenta ao que se passava. A pessoa entra no carro, revoltada, e abandona a rua.
A criança sorri e volta a brincar.
Ele tira os óculos escuros e sorri também, e com a cabeça estendida sobre o para-peito finge adormecer ao sol.

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