sábado, abril 12, 2014

Les Mauvais Garçon x La Grande Belleza


Tinhas tanta razão Mrs.Dalloway. Como sempre. Tinhas a razão e perspicácia do teu lado.
Estava um sol inacreditável e uma temperatura que nos rasgava da pele o inevitável. A vista sobre Lisboa tinha a mesma cota que aquele banco de jardim na Villa Borghese, lembras-te? Ironicamente ele também se sente em casa lá.

Tinhas razão. Fui encontra-lo no meu lugar, no meu velho cadeirão. Naquele irremediável Salão Pombalino vazio onde o som cheira a silêncio. Onde a vista pela cidade é soberba. Onde os azulejos azuis se deixam reflectir no chão de tábua corrida, e as paredes brancas fazem deslizar a luz até ao topo do pé direito alto.

A cadeira já não era a mesma. Era agora mais simplificada e forrada a cinza, com os braços a madeira envernizada. Era uma versão qualquer anterior à que todos usam do Van der Rohe. E não, não estávamos na vulgaridade de Barcelona. O tempo tinha passado e não deixava de ser irónico voltar a entrar naquele espaço.

Ele ouvia a mesma música que eu. Para além dos mesmos álbuns, ele ouvia a mesma rádio. Sentia a mesma sensibilidade ao passar-lhe mão na nuca. Usava um perfume com os mesmos ingredientes base. Era calado por opção. Quando eu não tinha opção. Era bonito mas fazia-me sentir que o devia fazer-se sentir ainda mais bonito do que já era. Tinha o traquejo e a malha certa. Usava as mesmas cores que eu. Tinha os dedos finos e gostava de se imaginar mais forte do que era naturalmente. Era gélido mas nos seus lábios derretia-se uma imensidão de ilusões cinematográficas. Fechava os olhos quando o beijava e transformava-se numa criatura frágil mas realista. Não gostava que eu sorrisse quando me beijava porque sempre entendeu que eu me estava a rir. Era delicado mas ágil. Falava a nossa linguagem e percebia até a minha cadência pelo náutico em nós. Não iria dar trabalho nenhum. Ansiava pelo Verão. O Inverno tinha sido rigoroso para todos e ele não escapara a um atropelo que tentava esconder por uma só razão. Desta vez fora ele a vítima. Tinha o humor negro e a acutilância dos nossos momentos mais criativos.
Tinha igualmente um sentido de observação cirúrgico e nada lhe escapava entre os dedos como gostava de imaginar. Cheirava bem. Tinha um som ensurdecedor misterioso por detrás do seu silêncio. Era bonito e tinha um nariz torto num ângulo que só eu repararia. Gostava dos mesmos filmes que eu. Dos mesmos jardins. Era do dia e não da noite. Mas desde o início que sempre te disse: "para além de todos os factos óbvios, ele tem qualquer coisa de errado que ainda não percebi bem".

Sentei-me perfeitamente consciente que do que estava ali a fazer. Como me ensinara a Piaf, vamos sempre preferir o fim ao feio.
Deixei-o por breves instantes ganhar fôlego e encher o ar com palavras cuja temática poderiam até abordar o tempo. Servi-me de mais um copo e recostei-me como quem se prepara para simplesmente ouvir.

Ele ganhava tempo e eu senti que não haveria nem mais um segundo a perder.
O que é que eu estou aqui a fazer afinal Matthew?” perguntei em voz baixa.
Ele percebeu exactamente ao que me referia e, com o jeito de uma criança com uma agulha nas mãos deixou-me o tempo para ser eu a atalhar caminho.

Estou aqui porque acabou e me vais querer explicar de alguma forma o que aconteceu. Estou aqui e não será na verdade por mim que me convidaste, mas sim por ti. Para que no fim, e apesar de tudo, eu guarde uma boa imagem tua e uma elegância no trato que paralisem qualquer possibilidade de te denunciar como um comum vulgar que tanto temes vir a ser. Não é?

Essa é uma forma muito resumida e bruta de colocar as coisas, não achas?

É esta a verdade e só esta. Não consegues dar mais um passo em frente porque ainda estás paralisado na história que trazes contigo. É normal, não tem mal nenhum. Tentaste mas afinal ainda não o esqueceste. Nada disso tem mal. O único erro foi teres-te dado conta disso a semana passada e desde então me teres deixado em banho-maria sem saber o que fazer. Nisso esperava outra coisa de ti. Sempre preferi o fim ao feio e devias tê-lo denunciado antes mesmo de surgir o vulgar.

Seguiram-se então as horas da tarde e a honestidade em paz entre dois homens. Seguiu-se o reencontro que faria sentido e nesse momento dei comigo perplexo com a ironia de tudo ali.

E não era a ironia fácil. Os factos irónicos de, afinal de contas, mais uma vez e sem saber, os homens de camper e bigode egobust se fazerem sentir nas pontes marcadas desta vida em Lisboa.
Não. Não tão pouco a ironia de ele mesmo não saber que conheço o seu objecto de amor-ferido muito melhor do que ele possa pensar.

Talvez um pouco o rever de camarote todo aquele ballet rose que noutros tempos patrocinei. Mas ainda assim não.

A ironia soberba que ele não se deu conta, e que me escorre até então pelos lábios, é a o contraste das cores do crepúsculo que repentinamente se tornaram visíveis em mim, ao aperceber-me de que o que estava a acontecer era uma repetição mas agora em papeis contrários.

Dá-se o arrepio da constatação e ouve-se as cordas do cello que tinha deixado esquecido lá atrás. Ele era o perfeito reflexo do que fui. Ele vivia aquele momento que obriguei um outro a viver.
Não haveria nada a fazer senão esperar que o tempo naquele corpo, lhe lambesse a ferida a céu aberto e o levasse onde cheguei anos depois. Mas não deixava de ser vertiginoso o assistir aquilo tudo de novo.

Sete anos antes, depois de um jantar no Les Mauvais Garçon em que o David fechou a porta e deixou acabar o vinho sem tempo naquelas poltronas velhas de um cabedal cansado, acordei numa manhã igualmente cheia de calor e tinha uma mensagem que deixaram para mim.
Ontem foi inspirador, tu és inspirador.
Fico assim....com vontade de absorver, de venerar o que é belo sem medo do que é superficial, com vontade de ouvir uma musica bonita e a preferia-la a uma conversa sobre a fome.
Os pormenores da vida devem ser desprezados, são ordinários.
Obrigado por tudo.   R.

O Matthew tinha-me feito regressar sete anos no tempo sem saber. Afinal eu era tão mais novo e ele ainda tinha tanto para aprender. O que nos distinguia agora não era no entanto a idade, era uma só coisa. A liberdade. A liberdade que só se conquista com a vida. E sete anos depois o olhar para trás levou-me numa grande viagem. Que no fim me deixa o travo de toda a La Grande Belleza.

Little Joy - Evaporar


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