domingo, setembro 28, 2008

The Passenger

E se algum dia acordares e não te recordares de muito mais para além dos últimos anos que passaste na clínica de recuperação?
Perguntou a “bela e perigosa” Julian.

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Estávamos algures entre o final de um Verão fugaz e o início de um Outono promissor. Num patético domingo em que Pietro se chegara mesmo a questionar se deveria acordar ou deixar que o dia passasse.

Vinham-lhe à memória as conversas e os saltos-altos de Piaf. A erudita inteligência daquela figura que entre linhas soltava um perfume qualquer que lhe nutria a pele com um pacto com o diabo.
A sua companhia era tão agradável e cénica que parecia querer definir o mundo com as teias que descosiam.

Uma das coisas mais extraordinárias naquela mulher era ter a perfeita consciência que, de Pietro, poderia arrancar tudo à excepção da resposta a uma única pergunta que silenciosamente o intelecto os permitiu acordar jamais ser feita. Se algum dia ela o fizesse saberia que a resposta nunca poderia ser totalmente verdadeira e isso iria estragar a verdade entre eles.
Um pacto de inteligência, um rasgo de sensatez.

Entre os corpos naquela mancha de gente já se passeava sozinho na noite seguinte. Ao subir da calçada cheia de gemidos começa a embriaguez da vaidade. Os abraços sedutores, as palavras superficiais, os gestos encenados… a mancha de figurantes que encobre os actores.

Susan tinha chegado à conclusão que o divórcio poderia vir a ser uma realidade. A dupla de amigos que a ladeava para que a colossal imagem não desmoronasse fazia de um tudo para relembrar que é nestas alturas que a superficialidade e o devaneio da vaidade nos serve.
A melhor anestesia de todas é o reflexo da beleza que conseguimos encontrar no olhos dos figurante quando nos desejam a embriaguez.

Dois passos em frente e Pietro Venucci ouve o seu nome a ser gritado ao mesmo tempo que alguém lhe derrama um copo de vinho em cima. Era a personagem com pretensões a aristocrata. Ridículo! As novas-putas estavam la todas. As aspirantes a novas ricas, os travestis e os quase travestis. As lésbicas famintas e os hetero modernos.

Mais um copo no bar de sempre e ao balcão ouve o nome da raposa. A raposa estava na cidade e andava disfarçada por aquelas ruas lembrando-o a ele o risco da parte menos racional de si.
Sai pela porta principal e lança um olhar de reconhecimento entre a multidão. Nada.
O território estava limpo.

Solta uma gargalhada e percebe que já à muito tempo não sentia o vampirismo daquela noite. Cobre-se com a capa e fura aqueles corpos para abandonar o palco sem que ninguém desse conta.
O telefone toca:
- Sim?
- Onde estás?
- A sair da cidade…
- Não saias… estamos a chegar à toca, vem ca ter que temos um saco de moedas douradas.


Ergue a mão e pára um taxi em pleno largo onde centenas de pessoas se rebolavam embriagadas em despedidas e guerrilhas sentimentais. Os tristes, os sós, os felízes, os anestesiados, os reais e os apenas superficiais.
Rouba o taxi à fila que por tantos aguardava e sente-se um marginal.
Voa até à toca e ao entrar sente a dificuldade do seu sangue em manter o equilíbrio naquelas escadas.
A música… o grande Zeus da sua existência… a maldita droga que o comandava desde sempre.
Prevê a malícia e vai de encontro a quem o aguardava.
Uma garrafa em comemoração… Uma qualquer comemoração que ninguém sabia mas isso também nada interessava.
Eram os dandies e os dada, os yupies e os wanna-be, os loucos e os contemporâneos. No fundo, alguns não passavam de retardados modernistas que tentavam a todo o custo imprimir páginas de existência com a ilusão de um charme tão frágil como as colossais expressões deles.

A músicaaaa… a música… e o seu corpo em alta temperatura deixando-se tocar pelo mundo e pelos corpos mundanos que não seguravam a saliva nos lábios.

O sexo.
O alarme.

De repente o corpo que o aguardava ao sono surge preocupado avisando que o William estava a passar mal lá fora.
Merda de amadores que insistem em drogas baratas e engolem um pilão inteiro de MD sem pensar duas vezes.
Lá foi ele ver o que se passava e a decadência imperava naquele beco escuro da velha cidade onde se escondiam dos dois polícias que vigiavam os excessos da toca.
Três corpos regurgitantes e moribundos faziam o maior esforço da vida para se livrarem de “todo o mal” que a infantil gula lhes tinha enfiado no estômago. Ridículos.

- Ed, já não tenho idade nem paciência para aturar estas merdas… eu estava tão bem lá dentro.
- Eu sei, desculpa, mas não sei o que faça. Ajuda-me.
- Chama uma merda de uma ambulância se nalgum momento esta triste cena piorar. Fazem-lhe uma lavagem ao estômago e amanhã já está pronto. Eu vou para dentro que aqui está frio.
- E deixas-me aqui, com eles?
- Sim… qualquer coisa vai ter comigo lá dentro.

Uma hora depois Pietro abandona o local do crime. Procura pelos corpos dramáticos na rua onde os deixara e como não os viu calculou que estava tudo bem.
Dirige-se à rua principal e enquanto espera por distinguir um taxi pára um carro que ostentava todos os clichés da nova burguesia.

- Perdido?…não quer uma boleia para casa?
- Boa noite… não, estou só à espera de um taxi.
- Mas eu levo-o o casa e metemos a conversa em dia. Afinal de contas desde que me deixou especado no Lapa Palace que nunca mais conversámos.


(este era um típico novo rico daqueles que ninguém sabia de onde tinha surgido e que caíra de chapão na cidade. O típico patético que achava que o seu dinheiro era a porta de entrada para a aceitação entre a tribo e que uma noite montou um cenário gigante de mordomias para o conquistar.
Pietro ainda se lembrava dessa noite. Ainda se lembrava da cara do camarero no salão de entrada quando saiu. Do olhar mordaz do jardineiro e roupa de noitada com que saira pela porta principal. No fundo até tinha alguma pena dele… o pobre rapaz era apenas uma pessoa pouco inteligente que só queria ser aceite.)

- Achei que tínhamos acordado não falar sobre isso..
- Tem razão… o que lá vai lá vai e não quero perder a sua amizade por isso. Eu no fundo até compreendi.
- Levas-me a casa então?
- Claro, com todo o gosto.

Estava então ele a rebaixar o corpo para entrar naquele carro rasteiro quando de repente sentiu que não o poderia fazer. O pobre desgraçado iria novamente alimentar uma ilusão de amizade e a queda seria ainda maior.
Mesmo bêbado, encheu-se de dignidade e disse..

- Scott, não posso… Mas um dia beberemos um copo, prometo.

Pára um taxi e atira o seu corpo cansado lá para dentro.
Desaparece na estrada e adormece na anestesia do seu sangue ao som Iggy Pop que o taxista, numa rádio qualquer, insistia em ouvir.
O mundo pareceu-lhe perfeito… o acaso daquele momento fechava na perfeição a bando sonora daquele fim-de-semana.E mais uma vez recordou as palavras de Piaf… e sim… a vida era um grande conjunto cénico.


The Passenger - Iggy Pop

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