terça-feira, janeiro 06, 2009

Crap Kraft Dinner


Olhei para o relógio e reparei que ja estava atrasado. A noite nesta cidade faz-me às vezes perder a noção do tempo e desde que escurecera devo ter abrandado o passo.
Desço a avenida então num ritmo mais firme mudo a música do ipod.
Nada de malas, nada de atrelados.
De membros soltos levava apenas uma garrafa comprada momentos antes.
As pessoas, os carros, as luzes, as árvores, as montras… a cidade.
Gosto tanto de descer a avenida a pé que nunca me canso de o fazer.

3ºesq/ toquei.

Do intercomunicador reconheci algumas gargalhadas e tive logo a certeza de uma noite bem passada.
A Clara recebe-me enquanto o bando já se tinha apoderado daquela que já foi a nossa casa tantas vezes.
Os abraços, os beijos, o reecontros, as histórias, as novidades.

Algures entre a cozinha e a sala de jantar oiço:
- Vens reparar o tecto do corredor?Ela insiste em manter o “traço pombalino” mas esta merda qualquer dia cai-nos em cima da cabeça.
- Não, não vim reparar nada meu amor. Como estás? Não sabia que vinhas. Se soubesse tinha-te trazido o DVD.

- Era para não vir, mas depois comecei a imaginar-me sozinha em casa e vocês aqui… não resisti e vim o mais depressa que pude.

- Pois, realmente costumas aparecer sempre depois de mim.

- Hoje superaste-me meu amor.


E aquele sorriso, aqueles lábios. Ela é das mulheres mais bonitas que conheci. De uma elegância e de um carisma absolutamente apaixonantes. Eu mesmo, quando era mais novo, não lhe resiti. Lembro-me agora. E foi tão engraçado. Naquela altura era de facto tudo tão perfeito.

O jantar tinha decorrido como esperado. O saudosismo de uma vida inacreditável entre um bom grupo de amigos que, por muitos rumos diferentes que tenha assumido, nos manteve sempre com a mesma cumplicidade.
As histórias e os detalhes sórdidos de noites demasiado alcoolizadas, as desilusões de amores perdidos, a recordação de outras paixões já esquecidas. Foi tudo tão bom.
O céu estava incrível lá fora e quando me aproximei da varanda percebo que a Clara estava por ali.
- Então meu amor?À espera de mais alguém? Anda dançar… já estamos todos alegres, não fiques aqui assim.
- Vou já meu querido, vou já. Hoje não me disseste que estava bonita.

- Porque estás sempre e hoje não seria excepção…ora… o que tens?Não costumas ser assim.
- Da-me o teu copo…
- Clara, o que se passa?

- Tens um cigarro?
- Mas tu deixaste de fumar…
- Va, isso é o que digo ao mundo, a vocês não preciso mentir.

- Toma.

- Obrigado.

- Mas queres falar ou queres que eu volte para dentro.

- Não, não vás… ou melhor, vai,..vai querido.
- Tu és linda… e já estava na hora de esqueceres esse gajo.
- Eu sei meu amor, mas se até tu levaste tanto tempo…
- Por isso mesmo, não te quero ver perder tanto tempo como eu perdi.
- Como conseguiste esquecer?
- Esquecer nunca se esquece. Mas muda-se de lugar a lembrança. Acho que o momento decisivo foi quando eu deixei de achar que não seria capaz e passei a decidir que seria.
- Va… vai dançar. Eu já lá vou ter, só estou mesmo a precisar deste cigarro e juro que regresso para os vossos braços.

- Está bem… estarei ali à tua espera.


Beijei-a na testa e voltei para dentro.
Mesmo no meio da improvisada pista de dança não consegui deixar de a vigiar.
A noite era perfeita, a companhia também. Todos a dançar como se o movimento nos atirasse ao esquecimento dos nossos amores fatídicos e só ela, a grande domadora de leões, se deixara levar pela dor.

Vejo-a a entrar finalmente de regresso ao clã e, de copo na mão preso apenas pela ponta de dois ou três dedos, brindou-nos com a sua graciosidade.

A beleza daquele momento era incrível.
Homens e mulheres extraordinários. Não por serem deuses ou deusas gregas mas por serem verdadeiros deuses do mundo em si. A beleza de tudo. O bom gosto, a elegância, o gesto. Tudo.

Deixei-me levar e do meu ipod dediquei esta música a todos nós.
Afinal de contas a beleza, bem como a juventude, tem um preço que sabiamos muito bem ser o denominador comum.
Ainda assim, que se lixem os outros.
Na verdade nunca perdemos nada que tenha sido realmente nosso.
Porque se perdemos, é porque nunca, na verdade, nos pertenceu.

Só nós… nós sim, somos nossos. E não há música que, por isso, não possamos dançar, nem vida que não possamos ter.


Crap Kraft Dinner - Hot Chip

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