segunda-feira, outubro 05, 2009

Après moi, Le déluge.

After me comes the flood


O telefone toca e do outro lado ouvia-se a voz de Laura demasiado entusiasmada para aquela hora ainda muito tudo. Abre os olhos e num gesto lânguido procura os ponteiros do relógio.


- Mas tu ainda estás a dormir? Eu não te posso deixar uma noite que dá nisto. Estás em casa? - Estou... mas que horas são? - Eu não acredito, o carro vai-te buscar daqui a uma hora. Tens tudo pronto? Vou ter que passar aí? E essa cara? imagino... - Aiii... menosss... eu vou, eu vou... deixa-me só despachar aqui umas coisas. - Não acredito! Quem é que aí está? - Va, já te ligo...beijo


Larga o telefone e estende o braço aos corpos que ali adormeciam.
As pernas entrelaçadas nas suas revelavam a fragilidade daquele que se mostrou mais forte na noite anterior.
Olhou em torno da cama e o cenário recordava-o daqueles tempos de La belle Époque... Extraiordinário – pensou.
Os copos partidos no chão, as garrafas e as roupas espalhadas por toda a casa inspiravam o seu sentido de humor logo pela manhã.
Levanta-se, nu, e agarra num blazer de veludo verde-escuro que estava mais perto de si do que lhe pareceu num primeiro olhar. Apanha o camafeu do chão e coloca-o na lapela.
Desce as escadas e liga a máquina de café enquanto procura um isqueiro que tivesse sobrevivido ao caos e lhe pudesse acender o cigarro amassado que encontrou no aparador.


Abre a janela e acende finalmente o cigarro. O tempo tinha mudado. A humidade daquela serra de Sintra entrava assim pela casa adentro num presságio de silêncio que o levaram até Bordeaux.
Do outro lado da rua estava a vizinha com aquele ar de quem, pela milésima vez, assistira aos gemidos e excessos da noite anterior. Ela tentava sempre não olhar quando ele estava à janela mas era mais forte que ela. Ele, enquanto fumava, expunha-se num reflexo facial mais do que sórdido na espera da cedência daquela velha moralista insuportável.
Era já um ritual... era sempre igual. E ela cedeu.
Ao olhar partilhava assim com ele a sua nudez e com isso o pecado que ela tanto criticava com telepaticamente. Assim ele ganhava o jogo da manhã. Ela cede à tentação o que faz dela uma rameira pecadora, e com isso jamais falará do que sabe.
Pobre desgraçada que vive presa a uma enormidade de disparates católicos que a levam até a partilhar a culpa de crimes que nunca cometeu. Ridícula – chegava ele à mesma conclusão de sempre.


Com o cigarro na boca, uma mão apoiada no parapeito da janela, deixa-se levar pelo momento e insinua o gesto de prazer ao tocar-se mesmo ali, em frente a ela.
Ela, invariavelmente, fecharia a janela naquele momento como sempre fez.
Estranhamente ela ficou ali, imóvel, cruel, sem fechar a janela e desta vez, com isso, ele começava a ganhar-lhe algum respeito.
É subitamente surpreendido pelas costas. Chega um dos gémeos com quem tinha festejado.
- Bom dia... deixa a velha tarado...
- O teu irmão ainda dorme?
- Sim... Queres café?

- Quero. Vocês têm que se despachar.
- Porquê? Isso são modos?
- Deixa-te de merdas... é hoje a merda do almoço.
- Foda-se! Esqueci-me!... é a que horas?
- A Laura disse-me que o carro vinha-me buscar dentro de uma hora... quer dizer, tenho 40 minutos agora.
- Merda... vou chama-lo! Ninguém pode ver-nos aqui! Quem é que te vem buscar?
- Segundo a Laura, um carro enviado pela tua mãe, porque não aproveitas a boleia.
- Tens tanta graça tu. Se ela soubesse nem um táxi enviaria!
- A tia adora-me e nem sonha ela o quão faço feliz a sua família...
- Nem brinques com coisas sérias...
- Va, chega aqui, a velha hoje está resistente, vamos mostrar-lhe como se faz...
- Porco! Deixa a infeliz.


O telefone volta a tocar. Era a Laura a relembrar o dress-code e a dizer que viria no mesmo carro que já estava a caminho.
- Quem era?
- A Laura está a chegar no carro que a tua mãe enviou. Parece que a tia foi generosa e estendeu o seu favoritismo até à Laura.
- Merda... temos que sair já. A Laura não nos pode ver aqui. Vou acordar o Pedro.

A campainha toca entretanto. Não havia mais nada a fazer, ela já tinha chegado.


Existem sítios no mundo em que um Domingo regular começa com um bom pequeno-almoço, o jornal e uma ressaca leve da noite anterior seguido de um dia inútil entre amigos em que se celebra o facto de estar presente a mais um belo dia de vida de uma forma quase que hedonista.


Existem outros em que, para fugir à rotina, outros domingos tornam-se diferentes porque o mais belo escondido da vida também também se pode revelar atrás de um segredo.

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