quarta-feira, novembro 22, 2006

Pasión


E hoje revivo o corpo perante a minha própria morte
O Inverno chegara e no silêncio do frio os meus ossos procuram resguardo na carne.

À dias que tento escrever… à dias que ando a pensar em voz alta com tanto por dizer.
Ontém passei mesmo ao lado do João, o para sempre “homem que diz adeus” o para sempre “pão para a multidão”.

Hoje o sangue que me rebenta na boca deixa-me o corpo à deriva de hora a hora.
O cansaço desta viagem que tem sido viver sob esta forma de pele, sentidos e dores, a que doravante graçejo de “carcaça” retoma-me a mim hoje mesmo.
As drogas relembram-me o espaço, a vida de outros tempos. O alcool liberta-me dessas mesmas memórias e o tabaco adormece-me o compasso de todos os ponteiros.

Amanhã será Lua-nova, dizem.
No sorriso travado revejo o espelho de toda a antiguidade naquela madeira.
Alguém sabe o que sei? Saberei eu alguma coisa que alguém saiba? É o devaneio…é o gesto do corpo embriagado que continua pesado na sua própria leveza.

Abro o armário e entre a roupa decubro o teu vestido. As marcas do baton permanecem até hoje entre a minha pele e o meu sangue. O veneno que injectaram dão-me o mote para a felicidade destes picos de insanidade.
Doi-me tudo… estou cansado.

E volto a sentir que não será agora, mais uma vez. Que te falo do atropelo. Da surpresa, da festa…das coisas que se vivem lá fora.
O cheiro da madeira húmida deixa-me assim, a querer terra molhada.
Aflito por gente desesperado pelo cheiro a vazio.
E a solidão onde mora?… a solidão é só um bom espaço de férias, mais do que isso é uma morte. Uma morte que nem te dás conta ser toda ela patrocinada por ti mesmo.

Que saudades do vermelho daquele tecido sobre o teu corpo. Do contraste entre o chão e o teu pisar. Danço em vertigem e recordo-me felíz. O abraço em aperto, gemido e som de mim, por mim, para mim, comigo, nunca me fez tanto sentido como ao som desta música e ao ritmo deste vinho.
O veludo deste líquido perfuma-me os desejos, as razões e as certezas.
Vou ter saudades vossas, claro.
Mas terão muito mais vocês saudades minhas.
Eu tentei… Mas agora já não me apetece mais.

Elevo a música naquele quarto, levanto-me e ergo o corpo apoiado na parede. Levanto o olhar e sinto que a pele estica o meu pescoço. O sangue surge com vida e, com a força de mil homens, escala-me a carne e os ossos.
Abro os olhos e sorrio para mim mesmo.
Elouqueci, mas vou.
Dou o primeiro passo e marco o novo compasso daqueles gestos.
O tango enche aquele espaço e eu encho-me de mim.

ao som… Pasión by Rodrigo Leão

1 comentário:

AnaT disse...

"Em ti acostam os barcos e a sombra dos grandes navios do mundo
vive o peixe, agitam-se as algas e medusas de mil desejos
em ti descansam os pássaros chegados doutras rotas
secam as redes, põe-se o sol
em ti se abandona a ressaca das ondas e o sal dos meus olhos
as árvores inclinadas, os frutos e as dunas

Em ti pernoita a seiva cansada das palavras, o suco das ervas e o açúcar transparente das camarinhas
em ti cresce o precioso silêncio, as ostras doentes e as pérolas dos mares sem rumo

Em ti se perdem os ventos, a solidão do mar e este demorado lamento..."

Al Berto

ao som...LIBERTANGO by Richard Galliano