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Estava verdadeiramente brilhante.
No corpo envergava um faustoso casaco de pêlo preto. Tão brilhante que cada partícula parecia arrancada de um animal cuja pele fosse de seda. No peito a descoberto sentia-se o arrepio daquele imenso, mas discreto, colar longo de diamantes que cegava em compasso com os restantes acessórios de pulso.
Sobre o rosto bronzeado apenas trazia os óculos escuros que de tão negros faziam esconder a maquilhagem nos olhos.
O perfume era forte.
Ao amanhecer saiu assim da arena onde passara a noite.
Para trás deixou as cinzas dos corpos em que tocara.
- Já vais?
- Sim… amanheceu e a noite já partiu mostrando-me que já chega.
- …tens a certeza?
- Tenho. Neles já não deixo mais nada senão uma recordação da minha saliva.
- …e eu?
- Em ti não deixo mais nada senão a queimadura que tanto mereceste…
- Pára!
- Porquê?Não gostas de ouvir?
- Não é isso. Mas não me apetece…
- …pois é…e assim foges de ti e da tua vida mais uma vez. Isso… ao virar das minhas costas enfia a cabeça debaixo da terra, não te esqueças. O alcóol que ainda te resta nesse sangue já não será suficiente para amparar tanta tristeza. Morrerás sempre com um estúpido sorriso nos lábios. Morrerás sempre a cada repetição desta cena que crias vezes sem fim. E depois, eu, logo eu, é que sou o louco desta cidade.
- Não te estou a ouvir.
- Estás. E estás porque, por mais que fujas, trespasso sempre essa pele imatura em fúria.
- Serei mais um rebelde sem causa?
- Serás mais uma causa que insiste em ser perdida.
- Adeus, não me parece um bom momento.
- Nunca será porque sempre o evitas. Nunca será porque, na verdade, não é de mim que foges…é de ti e dessa merda que estrangulas na garganta.
- …posso?
- Tens a certeza que é isto que queres?
- Não, mas também não me interessa… não és tu que dizes que é meu dever deixar de racionalizar tudo?
- E é…
- Então?
- Então que amanhã morrerias se o fizesses. Não é assim que esse teu sangue ganha vida. Primeiro alimenta o teu corpo de vida real e depois, só depois, podes achar que audácia te é permitida no delírio de um arrepio.
- Sempre é verdade que trazes veneno nos lábios?
- Nem vou comentar… a verdade tu sabes bem qual é. Morrerás com o mesmo vírus.
- Mata-me.
- Seria mais fácil, de facto. Mas não tenho como matar corpos que nunca tiveram vida.
- Cabrão.
- Sempre, mas de uma forma que faça sentido.
- E é aí que está a diferença entre nós, não é?
- Olha bem para trás e tenta perceber… aqueles corpos desventrados só queriam a loucura de sentir a normalidade da condição humana. Pensa bem.
- Mas não fui eu o portagonista da noite…
Vira as costas e começa a andar em direção à saída. A meio pára, e ainda de costas, ergue a cabeça. Leva a mão ao bolso e acende um cigarro.
Volta-se em torno do seu próprio corpo.
Sorri e depois de um travo no cigarro dirige-se novamente ao único corpo que se mantinha de pé naquela arena, ao corpo que se mantinha suspenso à espera de resposta, e diz:
- O que é que tu queres afinal?
Levanta o sobrolho e, no silêncio da resposta, beija a testa daquela face desesperada e cheia de medo.
Coloca os óculos escuros e gira sobre si mesmo. De costas para o centro da arena caminha num compasso que enundava a areia de sangue. Sente as cinzas daqueles corpos por debaixo dos pés. Ajeita o casaco e ao sentir a sua textura recorda-se de quem é. No caminhar ergue o pescoço e sorri para si mesmo.
A morte nele maquilha a sua perfeição… mas a vida em si sabe-lhe verdadeiramente bem.
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