domingo, maio 07, 2006

Arena Noir


Estava verdadeiramente brilhante.
No corpo envergava um faustoso casaco de pêlo preto. Tão brilhante que cada partícula parecia arrancada de um animal cuja pele fosse de seda. No peito a descoberto sentia-se o arrepio daquele imenso, mas discreto, colar longo de diamantes que cegava em compasso com os restantes acessórios de pulso.
Sobre o rosto bronzeado apenas trazia os óculos escuros que de tão negros faziam esconder a maquilhagem nos olhos.
O perfume era forte.

Ao amanhecer saiu assim da arena onde passara a noite.
Para trás deixou as cinzas dos corpos em que tocara.

- Já vais?
- Sim… amanheceu e a noite já partiu mostrando-me que já chega.
- …tens a certeza?
- Tenho. Neles já não deixo mais nada senão uma recordação da minha saliva.
- …e eu?
- Em ti não deixo mais nada senão a queimadura que tanto mereceste…
- Pára!
- Porquê?Não gostas de ouvir?
- Não é isso. Mas não me apetece…
- …pois é…e assim foges de ti e da tua vida mais uma vez. Isso… ao virar das minhas costas enfia a cabeça debaixo da terra, não te esqueças. O alcóol que ainda te resta nesse sangue já não será suficiente para amparar tanta tristeza. Morrerás sempre com um estúpido sorriso nos lábios. Morrerás sempre a cada repetição desta cena que crias vezes sem fim. E depois, eu, logo eu, é que sou o louco desta cidade.
- Não te estou a ouvir.
- Estás. E estás porque, por mais que fujas, trespasso sempre essa pele imatura em fúria.
- Serei mais um rebelde sem causa?
- Serás mais uma causa que insiste em ser perdida.
- Adeus, não me parece um bom momento.
- Nunca será porque sempre o evitas. Nunca será porque, na verdade, não é de mim que foges…é de ti e dessa merda que estrangulas na garganta.
- …posso?
- Tens a certeza que é isto que queres?
- Não, mas também não me interessa… não és tu que dizes que é meu dever deixar de racionalizar tudo?
- E é…
- Então?
- Então que amanhã morrerias se o fizesses. Não é assim que esse teu sangue ganha vida. Primeiro alimenta o teu corpo de vida real e depois, só depois, podes achar que audácia te é permitida no delírio de um arrepio.
- Sempre é verdade que trazes veneno nos lábios?
- Nem vou comentar… a verdade tu sabes bem qual é. Morrerás com o mesmo vírus.
- Mata-me.
- Seria mais fácil, de facto. Mas não tenho como matar corpos que nunca tiveram vida.
- Cabrão.
- Sempre, mas de uma forma que faça sentido.
- E é aí que está a diferença entre nós, não é?
- Olha bem para trás e tenta perceber… aqueles corpos desventrados só queriam a loucura de sentir a normalidade da condição humana. Pensa bem.
- Mas não fui eu o portagonista da noite…


Vira as costas e começa a andar em direção à saída. A meio pára, e ainda de costas, ergue a cabeça. Leva a mão ao bolso e acende um cigarro.
Volta-se em torno do seu próprio corpo.
Sorri e depois de um travo no cigarro dirige-se novamente ao único corpo que se mantinha de pé naquela arena, ao corpo que se mantinha suspenso à espera de resposta, e diz:

- O que é que tu queres afinal?

Levanta o sobrolho e, no silêncio da resposta, beija a testa daquela face desesperada e cheia de medo.
Coloca os óculos escuros e gira sobre si mesmo. De costas para o centro da arena caminha num compasso que enundava a areia de sangue. Sente as cinzas daqueles corpos por debaixo dos pés. Ajeita o casaco e ao sentir a sua textura recorda-se de quem é. No caminhar ergue o pescoço e sorri para si mesmo.

A morte nele maquilha a sua perfeição… mas a vida em si sabe-lhe verdadeiramente bem.

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