quinta-feira, junho 29, 2006
Horas de Vinho em Lucidez
Hoje brinda-se à morte com vinho tinto a escorrer entre pernas ofegantes.
Durante esta minha ausência, entre uma ilha e outra, encontrava-me no vazio de um celebrar silencioso.
Ao acordar decidira que seria o primeiro dia desta viagem em que as malas começariam a ser feitas para regressar.
Com o sol a rasgar aquele quarto sentiu-se um cheiro a verde que mostrava que tudo concordava com a minha decisão.
O corpo, cansado, erguia-se para se sentir vivo, para se encontrar nas entre-linhas de si.
O sangue despertava do marasmo de toda a agonia e começava um novo ritmo para fazer dançar os ossos.
Na dança dos corpos, das imagens e das palavras, apercebo-me que ainda não tinha a passagem nas mãos. Para quê fazer as malas se não tinha a data de regresso?… E porque não, se sabia que estava para breve?
Dirijo-me ao bar e sirvo-me de um solitário copo de vinho.
Aquela cor sempre trazia à memória as malas de viagem que comigo carregava.
Com uma t-shirt branca e umas calças de ganga comuns ecnontrava-me despojado de tudo e de todos. Estava neutro, estava no ponto… estava em perfeito enquadramento com o cenário de “arrumações”.
O som naquela aparelhagem fazia com que tudo perdesse peso.
Abri as malas e vagamente pensei: desta vez tenho que arranjar maneira de regresar com uma mala apenas… senão o peso será o mesmo e , pura e simplesmente, já não me apetece.
Rodei a cabeça sobre mim mesmo, e nas minhas costas tinha o sol que, por aquela mesma janela, entrava. Estava contra luz e fazia sombra sobre as malas vazias. Mudei de posição e fiquei virado para Norte decidindo iluminar, de uma forma verdadeiramente natural, todas as decisões que iria tomar.
E o Sol que descobri sabe-me tão bem…
Ao som daquela música feliz, com o copo elegante de vinho do meu lado direito, no chão, acompanhado do cinzeiro (ainda brilhante de tão imaculado) que amparava o cigarro ainda apagado, faziam-me leve como um pluma.
Às vezes acho que, para grandes descisões devem ser tomados em conta, apenas os fios de linho à superfície… porque o branco pode ser demasiado profundo e atrofiar a clareza necessária para a ocasião.
Sentado em sossego revejo cada momento vivido nesse imenso continente azul.
Surges tu… que em breves segundos me simplificas a forma. Num gesto encenado, coreografado e também azul, desenhaste uma diagonal curva no meu peito. Gélida mas suave, trazia um rasto de sabor agridoce.
A ironia dos teus olhos celebravam a vida irónica em mim. Afinal, embora despojado de tudo enquanto envergava apenas uma t-shirt branca, o Beno ali eras tu. Naquela cidade a vida era tua e eu fora apenas um estrangeiro em mim.
Assunto clareado, e deixei o que te pertencia fora da mala.
Mais um travo de vinho e já com o cigarro acesso lembro-me de consultar o correio.
Nele existia uma caixa de chocolates que em tempos, na enormidade do dessas terras, me enchia o peito de todas as emoções. Olhei para a caixa e, na aflição de sentir a sua vida agarrei-a com força.
Tépido e amargo… estranho e desagradável. Eram os adjectivos que qualificavam agora aquelas formas de pecado tão solitárias.
Ao estranhar revi a embalagem…
“Pedimos desculpa mas por motivos que lhe são alheios. Provavelmente egoistas até… Agradece-mos que não nos volte a contactar porque o produto já não corresonde à mesma marca.” – dizia o bilhete que me escapara quando aos chocolates me deitei.
Nem sei o que dizer… Nunca tinha lido nada semelhante, mas acho que a ideia me foi transmitida como alguém previu.
Menos uma peça para regressar comigo era certo.
Serás agora mais uma lápide no meu corpo… que assumio a morte pelo prazer da lágrima em que eu lamento, sobretudo, a falta de atenção às razões que, por vezes, ainda consigo exaltar nessa viagem de sofrimento contínuo sem bom porto.
Mais um pouco de vinho no copo que já vai vazio.
Quanto a ti, já era certo, não regressarás comigo desta ilha deserta.
Se poucas certezas houvessem tinham ficado claras quando, já no barco, por mero acaso, passaste por mim em silêncio para que eu não desse conta da tua presença.
E não dei… mas dei conta da tua passagem. E foi isso mesmo. Uma passagem com um dos segredos mais bem guardados da história nas tuas mãos. Ficarás nesta ilha, também com os outros…mas ficarás bem, ao teu jeito e contigo não reservo preocupações.
E sorrio pelo prazer de tudo isto ver acontecer…em tão pouco tempo, numa perfeita conjuntura universal. Parece-me razão isto do tempo em mim, e da sua ironia com os ventos do que tudo tráz de uma só vez.
Brinda-se à morte nestas paredes.
Brinda-se ao inefável prazer de, no auge da demência, tudo conseguir ver de uma forma mais clara do que antigamente.
E no brindar sente-se o desejo dos corpos que, nesse lado, gemem de asfixia pelo regresso de todas as plumas mergulhadas em champaghe.
Vive-se o carrocel das luzes de todas as cidades e o gozo de todas as formas de prostituição.
Vive-se o amargo intencional com a força de mil corpos numa orgia lasciva e mergulhada em dor. Vive-se tudo com a força necessária intencional para celebrar, um dia, o espontâneo de todos os doces.
Vivem-se vidas ao acaso… matam-se corpos em redor.
Hoje sinto o sangue mais leve.
O veneno hoje não mora aos gritos nestas veias… e os ossos levantam novos gestos.
Preparei a mala para o regresso e sinto-a como desejo – leve.
Ergo o copo à noite e danço com o veludo deste vinho no trespassar as horas desta madrugada.
Assisto ao nascer do sol e, a olhar para essa terra sei que o regresso se aproxima.
Brindo a todas as mortes que me trazem vida e derramo sobre as primeiras lápides o último pedaço de vinho sem que sinta a sede de outrora. Brindo à viagem e brindo por esse pedaço de terra que se prepara para me ver emergir.
Brindo com vinho porque o tom e o som nunca me pareceram tão bem.
As horas … em lucidez.
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