segunda-feira, setembro 25, 2006

27º Toquio


A chuva regressava calma aquela janela.
Por debaixo, o mundo inteiro iluminava o tecto daquele quarto de hotel em Toquio.


- Chegou o Outono, sabias?
- Acho que dei conta, este tempo já rendia saudades.
- Tu e este tempo tão chato.
- Não é chato, é inteligente.

O telefone toca e Leonor afasta-se.
Sempre soube que Miguel não fazia questão de partilhar telefonemas que não lhe diziam respeito.
No silêncio daquele quarto avistava a cidade.
A altura em vertigem permitiam-lhe a distância necessária para pensar e contemplar aquela estação.


- Há quanto tempo abandonaste este quarto de hotel?
- Uma semana, nota-se assim tanto?
- Um pouco. O que vais fazer com ele?Já decidiste?
- Vou faze-lo desaparecer da minha vida.
- Estava a falar do quarto Miguel.
- Eu não…
- Eu sei. E como é que isso está?
- Vou ver se o coloco à venda esta semana.
- Não estava a falar do quarto.
- Eu estava.

Debruçou-se sobre a janela, e do 27º andar avista um avião.
Pára o olhar e retorna à conversa com Leonor que, incansável, permanecia em espera sobre a cama.


- Trouxeste-me flores?
- Sim.
- És sempre tão simpática…obrigado.

E com um sorriso rasgado enche aquele espaço de calor. Aquela amizade era mais sólida que aquele colosal edifício onde se escondiam.

- O que é que te inquieta?
- Não sei bem ao certo… Sinto areia a fugir-me entre os dedos.
- Ainda não conseguiste o que querias pois não?
- Não.
- Eu disse-te. Nem tudo na vida está ao alcance do teu controlo. Querendo ou não vais ter que desistir dessa ideia.
- Nem pensar. Preciso que tudo corra como planeado senão estou fodido.
- Até que enfim assumes… A tal história que te contei e que desprezaste pertence-te, meu caro. Querendo ou não, é tua.

Olha-a nos olhos e sorri com aquele ar de cumplicidade.
Mais uma palavra e estava condenado a assumir a sua pertença.
Liga a aparelhagem e acende um cigarro.
Serve um copo de champaghe a Leonor e outro a si mesmo.


- Lembras-te da Carlota? Viaja amanhã também. Mas a passeio. Férias, acho.
- Não mudes de assunto…Mantem-te no aeroporto mas não mudes de personagens.
- Pára…
- São quantas ao todo?…pelas minhas contas serão umas quatro.
Extraordinário, sem dúvida. Já sabes como vais fazer?
- Ninguém me espera senão uma pessoa.
- Hum…e as outras, não esperas tu na tua vida.
- Pára já disse…
- Ok Ok, voltemos ao champaghe.
- Acho melhor…

Miguel muda de CD e inspira perlongadamente, sentindo os pés sobre aquela alcatifa branca de fios longos.
O copo gelado na mão é levado ao seu destino e, no travo daquele veneno, respira a mil vozes.
Estava condenado a si mesmo. Ou adormecia em pensamento ali ou atirava-se ao seu próprio fado.


- Vamos sair?
- Para onde?
- Não sei, só sei que quero… Tenho trazido a cidade aos meus pés e não pretendo fugir dela agora. Hoje não. Hoje serei dela novamente.
- Esta cidade engole-me, não sei como não te atinge.
- Atinge claro, só que, no diambular do meu corpo sobre ela deixo-me seduzir na aprendizagem constante de novas coreografias.
- Ai se eu pudesse…
- Nada te empede… deixa-te apenas levar.
- E depois?…acabo como tu?
- E isso é assim tão mau?
- Não, mas eu não me vou embora dentro de alguns meses. Eu não tenho como fugir.
- Nem eu… por isso mesmo cuido de saber onde deixo tudo aqui. Para quando voltar, seja lá isso quando for, eu não me perder no meu passado aqui.
Va, deixa-te de coisas…
Apetece-me comida crua e líquidos demolidores.
- Nunca mudas pois não?
- Mudo sim…e muito. Mas só amanhã ao anoitecer. Até lá nada posso fazer sem ser o gozar de um bom fim.

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