segunda-feira, abril 24, 2006

Silence I

No decorrer dos dias e dos acontecimentos, suspeitas e surpreendentes presenças levaram-me a ler coisas que me fizeram recordar outros textos, outros tempos, outras histórias.
Apesar de ter já quase um mês em cima desde a sua data de origem, aqui fica, porque não, mais um fragmento deste espaço.



" Estava ali sentado na minha poltrona branca quando me vejo projectado sobre a cama.
Estava calmo, em silêncio, deitado sobre a cama mas com os pés para a cabeçeira, de barriga para o ar e, num olhar estendido e invertido abraçava o sol que entrava pela janela de chapão na minha cara!
Aquecia-me, como gosto de sentir ao som de uma música qualquer.
Quando consigo estar só gosto de pensar… e tanto melhor, se for de pernas para o ar, com os cabelos a indicar de onde vem a força da gravidade, e a cara aquecida pelo sol.

Estava ali e lembrei-me que do outro lado do vidro há vida em marte. Lembrei-me do que tenho lido e vivido nos ultimos tempos. Do que tenho dito e feito…do que tenho ouvido e sobretudo, do que não tenho pensado.
De alguma forma, e para esta preciso de encontrar resposta, foi na tua história que encontrei o alento que perdera já há algum tempo. Estranho…muito estranho.

Hoje morreu o João…
Acordo e, entre raios de sol e um silêncio feliz oiço a notícia: “Até estou a tremer… Acabo de vir de casa da Rita, o João morreu!” dizia a minha mãe com aquele ar que só ela consegue ter a sentir a dor dos outros.
Não que eu fosse proximo do rapaz… se falei com ele umas 3 ou 4 vezes, entre as naturais saudações de vizinhos, fora muito. Mas era novo, era ingénuo e era mais um filho daquela pobre mártire que já enterra o 2 ou 3 (já nem sei),e era mais um João. Hoje morreu mais um João.

O dia foi estranho…estranho porque chegou a Primavera há uns dias e eu sinto que o meu Inverno não quer partir. Esteve calor mas humido…não choveu mas esteve sempre quase. Esteve aquela luz…aquela luz tão especial.
À pouco, enquanto estava sentado, foi exactamente disso que me lembrei…
Acho que passei o dia a acompanhar esta dança do tempo…do clima…da forma, da cor.

Estou assim, como o tempo…
Sei que a Primavera já chegou mas ainda não a tomo como certa… deixo que o meu Inverno se prolongue por mim abaixo porque é nele que eu me sinto acolhido. Por um lado sei que este Inverno já chegou ao fim e que com ele foi o momento de inércia… terei que respeitar o ciclo e seguir os impulsos da Primavera. Mas não me apetece…não hoje.
Apetece-me tudo e não me apetece nada. Estou assim, estou de outro modo qualquer.

Ao olhar pela janela avistei o possível sabor que a terra, já tão saturada da humidade, poderia assumir.
Apetece-me perceber e confidenciar o que penso às pedras da tua calçada.
Aqui a terra mostra-me que estás longe. Aí as pedras mostram-me que estou perto.
Quem era o tal casal de idosos de que falavas à pouco?
Que histórias carregam aqueles corpos já cansados de viver? Imagino-os baixos e fortes. Com um olhar cheio de morte, cheio de solidão mas bastante compreensivo.
Que corpos somos nós que encontramos a solidão em cada vértice de um qualquer desejo.
Às vezes o frio rasga-nos a pele e deixa feridas abertas.
A dor que elas nos trazem, trazem-nos também o inefável prazer de pensar. A análise do mundo cabe-nos a nós no auge das nossas pretenções.

No fundo da rua está um corpo jovem à deriva. Anda, vagueia, sem se despistar. Os seus ossos já conhecem o caminho e os gestos. Regressa a casa, mais uma vez, mergulhado no pior dos sentimentos.
Está dormente…já não sente os pés, as pernas, os braços…o tronco. Resta-lhe a dor dos pulmões que ainda se enchem de coragem para mais um gesto. Nas mãos procura a memória da última pessoa que as acolheu.
Sente a dor que nos tráz ao mundo…sente o parto de si mesmo.Sente mas, de tão dormente, não o exprime de forma mais entusiasta do que um suspiro, coreografado com um pestanejar dançante.
É a morte.
É a vida.

É o abandono dos nossos ossos, das nossas carnes…do nosso sangue.
Somos aquilo a que nos propomos…e enrolados no fascínio de mil coisas acabamos enliados na dor. Essa teia tão familiar e tão maternal. Na dor podemos mergulhar sem correr riscos porque nada nos será tirado. Morremos assim lentamente, sentindo o prazer que nos tráz a consciência de viver um espectáculo.
Mas ainda não serrámos os olhos, apenas nos alimentamos desta dança de andar sempre perto.
A agonia e a dilatação das nossas cordas vocais enche-nos o peito de ar. Sofremos em silêncio o preço desta felicidade esquecida.
Sabemos bem que estas contrações musculares um dia terão que se tornar noutra coisa qualquer. Sabemos bem que não passamos de mais um bicho que vive de metamorfoses. Sabemos bem muita coisa mas nem para tudo temos a resposta.

A beleza é o pronúncio dos nossos olhos.
Em tempos, à porta de uma muralha, mesmo sentado sobre as pedras, estava um velho.
A sua cara era deliciosamente esculpida com as rugas de muitos séculos. O seu cabelo era de um branco respeitável. “Chega-te a mim rapaz” disse ele.
Eu era uma criança mas jamais me esqueci o que me contara. Nunca o partilhei com ninguém mas no sentir do meu crescimento e na dor desta doença de ser pensante, acredito, cada vez mais, que me revelou um segredo da vida.

Carrego o corpo cheio de mim na esperança que outro corpo o consiga suportar. Estou desmaiado e sigo nos ombros de alguém que já não tem alma.
Sigo e vagueio no delírio tranquilizante de trazer os olhos semi-serrados. É a ausência de sol, é esta a luz… é o calor, é a humidade que se esbate na minha cara e no pouco de braços que trago a nu. Os meus cabelos já não me indicam o norte. Já não tenho diamantes para verter nem vontade de gritar. Estou assim, carregado e conduzido pelo vazio de uma alma que não me quer sequer ouvir.

De que me servem os corpos que trago vincados nas mãos… as cinzas daqueles que faço arder. As danças e jogos difíceis de decifrar… a loucura ou o abalão do erotismo pujante. Hoje estamos sós… por muitos fascínios ou por muitos delírios que estes corpos conheçam…estamos sós.

É a morte.
É a vida.
"


26.Março.2006

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