O carro parou mesmo à porta como pedi para não acontecer.
A extravagância de todo o código protocolar rebentavam em discordância com o meu estado de espírito. Olhei para o Manuel e com um olhar cansado acho que lhe disse:
Surpreendido com o sentido de humor que até hoje me surpreende, não evitei desmontar-me ali todo. Afinal de contas aquele homem já assistiu a tanta coisa que talvez ele seja dos poucos que realmente me conhece.
- Tu tens uma lata Manuel. Se a Sr.ª minha mãe te ouvisse agora iria já achar que até a ti te converti. Mas talvez tenhas razão… só estou cansado e não me custará assim tanto mais uma noite de supostas “iluminações e vaidades”.
- Ela está de partida e faz mesmo questão que esteja aqui hoje. No fundo acho que ainda vos irei ver juntos um dia. Quem sabe casados.
- Manuel, menos. Sabes bem que ninguém acredita menos no casamento que eu.
- Vá… vá lá que já conta com a sua elegante hora e meia de atraso.Abriu a porta e saí com todo o gesto daquele rectângulo de silêncio confortável.
Irrompo pelo corredor do jardim que reflectia no chão toda a minha vaidade. Subo os degraus e sorrio para o camareiro que me rebenta de simpatia por finalmente me ver.
Aquele também se algum dia abrisse a boca haveria de revelar muitos segredos de tantos que já lhe passaram pelo braço.
As portas de vidro abrem-se e ao primeiro rasgão senti logo a imensa combustão de perfumes e os sons clássicos que ela tanto fazia questão de ter presentes em todos os inícios de festa.
Entre a multidão de vestidos longos e smokings alugados os meus olhos não conseguiam evitar as jóias (umas falsas outras verdadeiras) das tantas personagem que aquele mulher consegue reunir a seu prazer.
Sempre tive a sensação que muitas daquelas pessoas se vestiam e se adornavam especificamente para ela. Afinal de contas, para tantas, um convite de Isabelle é quase que uma nomeação para a casa real de um condado onírico qualquer.
A bandeja dirige-se a mim, aceito uma bebida. Agarro no copo e sinto uma textura diferente. Olho para as minhas mãos e percebo o detalhe sublime. Só ela mesmo para se lembrar de uma coisa destas. Cada copo tinha preso, no pé, uma fita de cetim encarnada. Nas duas pontas da fita estavam presas duas medalhas (cada uma em sua ponta) de metal com as seguinte frase:
“La Vie en Rouge”.
Ela sempre foi a mais lunática, a mais louca, a mais minuciosa mas isto eu achei extraordinário.
Procuro-a de imediato naquele imenso hotel. É ela que me encontra e, pelas costas, abraça-me.
- Estás à procura de alguém?
- De ti meu amor… tu és incrível.
- Gostas?
- Estás linda, como sempre. Eu sabia que haverias de estar de vestido “Rouge”. Percebi isso nas medalhas.
- Vesti para ti e terás sido dos poucos que reparou nesse detalhe.
- Não sejas assim, toda a gente terá reparado. Aliás, é por isso que o fizeste.
- Achas mesmo?…sabes bem que o fiz para nós.
Repara…
(e rodopiou sobre si mesma com os braço ao alto recordando os seus tempos de bailarina quando o seu público a aplaudia de pé)
Não resisti e comprei-o para mim. Liguei ao Manuel e ele revelou-me o que tinhas preparado vestir.
- O Manuel, aquele traidor… e a cena do carro também foste tu que o convenceste a fazer?
- Claro meu querido, onde já se viu Sua Alteza entrar de de forma discreta…
- Só tu. Nunca vais mudar pois não?
- Nunca…E desliza a mão sobre o meu braço, aproximando os lábios dos meus, provocando o orgasmo da imensa dança entre o seu perfume e a minha pele.
Agarra-me na mão e puxa-me conduzindo-me pela festa enquanto, no disfarce da simpatia em que a todos sorríamos, íamos falando.
- Tenho umas pessoas para te apresentar.
- Ok, mas conta-me, como estás?
- Estou pronta.
- Pronta?
- Sim, pronta para não mais voltar sem ser somente assim… de passagem, de festa.
- Eu percebo…
Somos interrompidos por um burguês qualquer que na encenação do seu gesto quase fez-nos prever que, até nós, já teria adormecido muita gente em escassos minutos de conversa.
O burguês, um jovem artista plástico que também escrevia poesia (tão pouco surpreendente) entre o exagero da adoração por ela deixava escapar o ar nervoso de um desejo voraz pelo meu pescoço. Era infinitamente delicioso no seu constrangimento e exagerado esforço em manter a pose.
Isabelle, como uma verdadeira diva, mantinha a pose provocadora versus professora de ballet entre o gesto da ponta dos seus dedos e as delicadas e flagrantes expressões do seu olhar. Nunca me largara o braço durante toda aquela agonia de conversa da treta e fez deixar claro que nem tão pouco o ia fazer quando me tentei soltar no final do primeiro minuto.
Enquanto levo o copo à boca desvio o olhar cruzando-o com o dela. Ela estava a ter um prazer mórbido com toda aquela encenação. Ela gritava em silêncio numa gargalhada infantil por dó daquela criatura. Não o deixava invisível com o torcer constante do tornozelo. Mas era óbvio que o infeliz nem o notou.
Finalmente o burguês livrou-nos da agonia quando Isabelle, já rendida, o decide apresentar a uma vereadora qualquer. Uma carcaça que já estava tão habituada a entrar em cena quando preciso que tinha certamente já bebido demais para o aguentar.
Avança rapidamente em fuga arrastando-me para o jardim como se por dentro tentássemos mais um record de corrida no Luvre.
- Que tédio de personagem Isabelle, era aquilo que me queria apresentar.
- Não querido, mas agora também já não interessa… Ai foi tão divertido. Reparaste como ele estava nervoso?
- Reparei…parecia uma criança. Achas que ele desconfia de nós?
- Acho que ele terá a certeza e estava com medo que nós o percebesse-mos. Ridículo. E o desejo? Ai…e o desejo…
- Pára…
- Lá está cherrie, lá está… como é que a vida seria Rose se pode ser Rouge?
- Já tenho saudades tuas.
- Eu sei, mas é bom que o sintas porque tenciono esperar-te lá.
- Tu estás pior meu amor… sabes bem o que a aquela cidade faria de nós.
- Aquela cidade à muito que nos espera.
O silêncio apoderou-se daquele lugar. A festa decorreu como esperada e mais uma vez assinalou o adjectivo de inesquecível para tantos daqueles corpos.
O meu carro chegou e eu decidi ficar.
Na manhã seguinte acordo e a cama estava vazia. Pelo frio dos lençóis ela já tinha partido à algumas horas. Na mesa, um bilhete simples:
“A morte fica-nos tão bem. Isabelle”
Inundo-me no banho e sinto o empregado a entrar. Quando regresso, junto ao pequeno almoço tinha uma mala que fabulosamente o Manuel (o tão extraordinário Manuel) deixara na recepção com duas mudas de roupa e um frasco de perfume.
Dei comigo a pensar que, se a minha vida dependesse de algumas pessoas, eu seria perfeito com toda a certeza.
Arranjo-me e já junto à porta ainda vislumbro o travo do seu perfume. Ela desenhara tudo na perfeição e como uma grande miragem até no abandono se tornava perfeita.
Passo pela recepção e peço para me chamarem um taxi. Ainda era muito cedo para eu ouvir o Manuel.
Do lóbi de entrada reconheço uma silhueta lá fora. Aproximo-me e não queria acreditar.
Era ele, Matthew. A olhar para mim, nas escadas do Hotel, com toda a certeza de quem me esperava por aquele momento.